Entrevista Edgar Morin
O pensador francês Edgar Morin, que esteve no Brasil no mês passado, a convite do Sesc, faz nesta exclusiva à E uma reflexão sobre o homem diante da revolução cibernética. Fiel a seu estilo, envereda por questões básicas, como ética, solidariedade e morte. Morin, um dos grandes ícones da intelectualidade européia deste século, comenta os avanços e retrocessos experimentados pela humanidade contemporânea, como as conquistas nos campos do conhecimento e da ciência, e a extrema bárbarie provocada pelas duas guerras mundiais e outros grandes conflitos regionais. Discorre sobre a existência de duas mundializações: uma ligada ao capital e, portanto, nociva, enquanto a outra conduz ao congraçamento e à alteridade. Morin fala ainda sobre a importância de reformar o pensamento em benefício do próprio ser humano, para que possa enfrentar com mais instrumentos a complexidade dos problemas e da existência. Diante da revolução tecnológica, do fim do comunismo, da supremacia do capitalismo, da Internet e de todas essas revoluções, o mundo está melhor? Podemos ser otimistas? As palavras otimismo e pessimismo, a meu ver, não têm sentido, porque o futuro é incerto. Podemos dizer que a queda do comunismo totalitário é um acontecimento positivo. Porém, em contrapartida, podemos afirmar que o liberalismo econômico não resolverá todos os problemas, além de ser um potencial criador de novos problemas. O desenvolvimento tecnológico sempre foi ambivalente: se a técnica permite liberar os humanos de muitos trabalhos cansativos, por meio da introdução das máquinas nas indústrias, por exemplo; ao mesmo tempo, ele sujeitou-nos à sua lógica, ou seja, a lógica da nação artificial. Os trabalhadores tiveram de se sujeitar à lógica das máquinas, à cronometragem, à especialização, etc. A Internet, que permite múltiplas comunicações, favorece o tráfico financeiro, as máfias, etc. Não podemos pensar que o desenvolvimento tecnológico e econômico propiciará o desenvolvimento moral, psicológico e humano. É preciso entrar no próximo milênio refletindo sobre o que foi o nosso século, que trouxe muitas mortes: morte com as duas guerras mundiais e com os campos de concentração, trouxe a ameaça mortal com o desenvolvimento das armas atômicas e também uma outra ameaça sobre a biosfera, sobre a própria vida.
O que existe como germe de um sentimento positivo encontra-se na multiplicação das comunicações no planeta, no fato de que todos os humanos, onde quer que estejam, têm problemas de vida e de morte semelhantes. A atualidade demonstra que todos os habitantes do planeta vivem em uma mesma comunidade de destino. O problema é, portanto, saber se nós tomaremos consciência desse destino em comum e se faremos uma outra mundialização. O que isso quer dizer? A mundialização que aí se apresenta é baseada na técnica e na economia. Mas existe uma segunda mundialização minoritária que aponta para a mundialização das idéias de humanismo, de democracia, da compreensão entre os povos e mesmo da cidadania terrestre. Por exemplo, hoje, a Anistia Internacional, o Green Peace, os Médicos sem Fronteiras, muitas ONGs são cidadãos do planeta, ou seja, não se interessam apenas pelas suas respectivas nações. A meu ver, a segunda mundialização é aquela que poderia fazer da Terra uma pátria comum, sem que percamos nossa pátria de origem. Essa é a incerteza do próximo século. Como eu não sou profeta, não posso dizer o que vai acontecer.
Alguns economistas, basicamente americanos, começam a pensar que toda essa tecnologia, entrando no cotidiano das pessoas, permitirá que haja uma distribuição de renda mais correta, honesta, enfim, mais justa. Qual é a sua opinião? O desenvolvimento das produções das culturas de cereais, de arroz e a aqua cultura permitem, hoje em dia, alimentar todos os seres humanos. Mas os famintos existem, os problemas de desnutrição continuam porque quando se ajuda um país que sofre de fome, a maior parte dos recursos é desviada pelas máfias, pela burocracia e pela corrupção. E os economistas sempre cometem erros, próprios deles, julgando que é a Economia que pode resolver todos os problemas. Eles, até o presente momento, freqüentemente se enganaram, incapazes de evitar as crises e de prever o futuro, pois a Economia é uma ciência fechada que não se dá conta de todos os aspectos, sejam psicológicos, sociais, culturais ou históricos.
A Economia não está separada do mundo. Um grande economista liberal, Friederich Von Hayeck, disse que um economista que é somente economista é um animal pernicioso.
Um sociólogo americano chamado Richard Sennet lançou um livro no qual defende a idéia de que a globalização acabará com a solidariedade dos trabalhadores e, portanto, com a ética deles. Ele diz que sem solidariedade não há ética. O que o senhor pensa sobre isso? A crise da solidariedade começou antes da globalização atual, pois em todos os países economicamente desenvolvidos existe o individualismo exagerado, oriundo da degradação de antigas solidariedades, como a familiar, da cidade, do bairro, etc. A integração num trabalho especializado fecha o indivíduo num pequeno setor e o impede de ver os problemas globais.
O desenvolvimento adotado pelas economias monetárias também vai num sentido contrário ao da solidariedade. Surge, dessa situação, a crise da solidariedade, ou seja, uma crise da ética. O alimento para a crise é a extensão do liberalismo econômico no mundo inteiro. Mas, a meu ver, a resposta a essa crise está na regeneração da solidariedade e se tomarmos consciência de que somos cidadãos de um mesmo planeta, de que teremos todos os mesmos problemas vitais e de que devemos civilizar a Terra, poderemos tornar a ser solidários. É por isso que eu digo que existe uma segunda globalização mais importante e que vai no sentido contrário à primeira, mas que, infelizmente, é muito mais frágil.
O que o senhor entende por ecologia da ação? Quando empreendemos uma ação, especialmente no domínio público ou social, esta ação, quando ingressa no meio social e econômico, vai parar de obedecer às nossas intenções, pois sofrerá diferentes influências e se desviará do seu sentido, rumando muitas vezes em sentido contrário à nossa vontade. Isso significa que não é suficiente termos boas intenções. É preciso termos boas estratégias para impedir que a ação tome um sentido contrário. É disso que geralmente nos esquecemos: de que a ação escapa do seu autor e de que freqüentemente pode ter conseqüências inversas da sua intenção inicial.
O senhor afirma que o homem habita a Terra ao mesmo tempo prosaica e poeticamente. Será que o senhor pode nos desenvolver essa idéia? Prosa e poesia não são apenas gêneros literários. São duas maneiras de viver. Quando vivemos prosaicamente, realizamos coisas obrigatórias, por vezes entediantes. Coisas que não nos trazem emoção e que, algumas vezes, são atividades cansativas. Somos obrigados a realizar certas atividades prosaicas para sobreviver e para ganhar a vida, por exemplo. A qualidade poética da vida é a qualidade que encontramos na comunhão entre as pessoas: nas festas, no fervor, no amor, no futebol, nos poemas, enfim, em todas as coisas que dão uma intensidade afetiva. A meu ver, existe um excesso de prosa na vida porque obedecemos muito à lógica das máquinas artificiais, às inteligências artificiais, e não olhamos suficientemente para a lógica do ser vivo, uma lógica segundo a qual viver é expandir-se afetiva e intelectualmente.
A medicina parece estar conseguindo resultados positivos para prolongar a vida do homem. Como fica a morte diante dessa possibilidade? Até o momento, o prolongamento da vida humana não é sempre um prolongamento da vida de seres humanos com plena saúde, de posse de suas forças físicas. Prolonga-se a vida dos seres humanos em estado de enfermidade lamentável. Portanto, a solução não está em prolongar a quantidade de vida; é preciso agregar qualidade. Seja em qualquer medida, o prolongamento da vida terá um limite, ele não será capaz de suprimir a morte. A morte restará como um problema fundamental para o ser humano. Hoje em dia, nas condições culturais em que nos encontramos, as pessoas gastam muito tempo tentando reencontrar a si próprias, em saber o que são, o que elas querem mas, freqüentemente, descobrem as respostas tarde. Muitas pessoas envelhecem sem realizar aquilo que gostariam de ter realizado.
Neste século, o homem conseguiu promover duas coisas extremamente contraditórias: nunca matou tanto o ser humano, e, ao mesmo tempo, nunca evoluiu tanto no conhecimento, nas Ciências, na Filosofia e na compreensão do homem. Como o senhor analisa essa contradição? Na medida em que o homem detém o conhecimento especializado em múltiplos domínios, os progressos do conhecimento não são suficientes. Nós detemos um conhecimento capaz de religar todos os elementos separados num pensamento mais rico e global. O conhecimento científico não traz, por si só, a conseqüência moral. A Ciência é conhecer por conhecer. A moral é outra coisa.
Portanto, temos sempre o mesmo problema que se traduz num déficit ético. Além do mais, a Ciência possui dois aspectos: o aspecto de conhecimentos maravilhosos e o aspecto destrutivo, como a bomba atômica e a manipulação genética. A técnica foi colocada a serviço da barbárie e nós vimos isso durante as duas guerras mundiais. Nós ainda não saímos, digamos, da barbárie do espírito humano para ingressar em uma época civilizada.
O que o senhor entende por pensamento complexo? Como pode ser engendrada a reforma do pensamento? Nós vivemos numa época em que o ensino nos ensina a separar as coisas e não a religá-las. Um bom conhecimento é um conhecimento capaz de apreender (captar) a complexidade daquilo que se passa, além de situar as informações num contexto, considerando os fenômenos globais. A complexidade é tudo o que está misturado. Podemos salientar que o conhecimento é insuficiente em relação a toda complexidade dos problemas do planeta e da humanidade em geral. Eu acredito que é preciso reformar o pensamento, ou seja, reformar o ensino, pois os espíritos devem estar preparados para enfrentar a complexidade do mundo. Eu insisto, também, que em nenhum lugar nos ensinam como afrontar a incerteza. O destino humano, individual ou histórico, é incerto. A meu ver, existe muita reforma de pensamento a ser realizada para que sejamos capazes de nos defrontarmos com as tarefas gigantescas do século que chega. Vivemos em uma época em que o mundo está no interior de cada um de nós: de manhã, lendo o noticiário europeu, tomo um café que vem do Brasil e um chá que vem da Índia. O mundo está no interior de mim mesmo. Nas favelas brasileiras, o mundo está presente de uma outra maneira, porque o desenvolvimento da monocultura expulsou os camponeses de sua terra. Nessa favela são utilizados o alumínio e o material plástico que vêm desta civilização mundial.
André Breton, numa das máximas sobre o surrealismo, disse que era importante não separarmos a arte da vida, pois arte e vida são uma coisa só. Isso é possível ainda hoje? É uma idéia muito justa. André Breton, a quem tive a honra de conhecer pessoalmente, tinha, assim como os surrealistas, a idéia de que a poesia devia ser vivida. Isso significa que a arte não é um luxo, lazer ou divertimento. A arte nos fala de nós mesmos, dos problemas de nossa vida. Se tomarmos, por exemplo, a última obra de Beethoven, no final, ele quis escrever o sentido de sua música. Ele escreveu "Mussen es seinen? Es mussen sein" ("É possível todas as tragédias da vida, todas as dores da vida, todas as dificuldades da vida? Sim, é possível"). A primeira frase é a revolta contra o destino e a segunda nos diz que é preciso aceitá-lo.
Beethoven nos deixa diante de suas contradições. Cada um de nós deve se revoltar contra o destino e aceitá-lo ao mesmo tempo.
Neste século, nos deparamos com duas concepções filosóficas distintas, a de Jean Paul Sartre e a de Albert Camus. A qual pensamento o senhor se filiaria, na visão que Camus tinha da vida em especial, ou em Sartre, com sua visão existencial e política? É evidente que sob o plano político e moral, filio-me a Albert Camus, porque Sartre mistificou os falsos julgamentos políticos, notadamente sobre a União Soviética, o comunismo etc. Albert Camus, desde o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima, viu que esse fato representava uma tragédia para a humanidade. Sartre não percebeu isso. Camus permaneceu um personagem ético e político muito importante. Existem aspectos na filosofia de Sartre que são muito interessantes, mas eu creio que Camus se mostrou à altura dos desafios do século e Sartre respondeu muito mal aos mesmos desafios.
Sobre a questão do feminismo neste século: a mulher desempenhando um papel igual ao do homem, e o homem ocupando um lugar às vezes igual ao da mulher. Do ponto de vista do equilíbrio social, o senhor acredita que os espaços avançaram? O equilíbrio pode se realizar quando a mulher, por meio da emancipação, passar a realizar atividades que, antigamente, eram reservadas aos homens. O homem também exerce atividades reservadas às mulheres, como lavar a louça, cuidar das crianças, etc.
O equilíbrio ocorre quando há uma relativa feminilização do homem e uma relativa masculinização da mulher.