sexta-feira, julho 11, 2008
Feudalidade e semifeudalidade em Nelson Werneck Sodré1
Paulo Ribeiro da Cunha
Em 1962, Nelson Werneck Sodré lançou um livro denso e volumoso de considerável impacto no debate político e acadêmico: Formação Histórica do Brasil. Objeto de um fecundo amadurecimento teórico e intelectual, esta publicação também refletiu a leitura do autor sobre o modo de produção feudal no processo histórico brasileiro, sem falar que nela apresentou algumas singularidades importantes nesta construção teórica, resultado de amplas pesquisas ao longo de seu período como professor do ISEB.
A primeira delas foi o diálogo que Sodré estabeleceu com autores marxistas que não faziam parte do arcabouço reflexivo brasileiro à época, a exemplo de Mariátegui. A segunda, embora o debate sobre o feudalismo no Brasil fosse uma polêmica que tradicionalmente incorporasse intelectuais marxistas e não marxistas ao longo de nossa história, este monumental trabalho foi, em última instância, o epílogo de um longo processo de amadurecimento intelectual de Werneck Sodré sobre essa temática; reflexão essa que já estava presente nos artigos da juventude e que até se apresentou de forma conflituosa em alguns de seus trabalhos do período e maturação.
Digo isso na medida que, por um breve período de sua trajetória intelectual, o historiador mesmo sinalizou para a possibilidade de haver no Brasil uma fase Capitalista Mercantil presente no interregno de sua rotação ao debate marxista. Isso, evidentemente, não o livraria de críticas e equívocos de várias ordens, a maior, talvez a mais injusta, é a (des)qualificação de Formação Histórica do Brasil como a fundamentação teórica da linha política do PCB pós Declaração de Março de 1958, leitura ainda hoje percebida por muitos analistas contemporâneos. A despeito dessa polêmica, essas críticas não impediram que o livro ganhasse o debate público (apesar da considerável resistência ao autor e sua obra em determinados setores acadêmicos) e fosse sucessivamente reeditado ao longo dos anos seguintes.
Todavia, dentre suas várias teses e por não dizer polêmicas sobre sua obra, seguramente, esta sobre o modo de produção feudal foi a que mais tencionou o autor teoricamente ao longo de sua trajetória intelectual. Mas de que forma a questão sobre a feudalidade ou semifeudalidade se apresenta em sua reflexão? Embora a fecundidade do debate e a densidade de sua reflexão não permitem mais que alguns apontamentos preliminares no espaço de um artigo, vamos a alguns desenvolvimentos, particularizando duas mediações desse resgate. Inicialmente, o autor recupera a leitura que o desenvolvimento brasileiro foi extremamente desigual, comportando etapas históricas diferenciadas e paralelas ao mesmo tempo que, por extensão incorporou com nuances particulares, a transplantação de bases de uma sociedade — a feudal — que há muito deixava de ser referência nos países coloniais. Nisso incorre para este modelo de interpretação que, inicialmente, o escravismo veio ao encontro da necessidade de efetivação de uma produção em larga escala objetivando a exportação. Mas como bem ressalta o historiador, não foi o escravismo extensivo a todo o território brasileiro. No restante do Brasil, em especial a região amazônica, na área pastoril sertaneja e mesmo no sul do país, somente para citar algumas regiões, o processo foi diferenciado. Por exemplo, no caso das missões religiosas (jesuíticas ou vicentinas), ele sustenta a tese que a atividade produtora (ervas e especiarias), em alguns casos, destinava-se ao mercado externo como também ao mercado interno, mas com uma característica no plano geral, a produção, qualquer que fosse, era de reduzidas proporções quando comparado a produção do açúcar produzido em larga escala.
Daqui incorre a polêmica, se aqueles que trabalhavam eram escravos, produtores ou servos. E a mesma indagação remete as demais áreas sinalizadas acima, entre outras atividades como a economia pastoral sulina. Como a forma de produção nestas áreas não gerava excedente, o índio livre produzia de forma diferenciada, até porque ele não era um escravo.
Evidentemente isso não descartava, na interpretação de Sodré, que não houvessem outras situações específicas, formas mistas em que o escravismo também estivesse presente. Mesmo assim, nas regiões não destinadas à exportação, leia-se, áreas secundárias/subsidiárias como ele apresenta na sua obra acima citada, a relação de trabalho era diferencialmente outra na medida que a forma de remuneração era fundamentalmente em espécie. Werneck Sodré ressalta ainda em sua análise que a questão metodológica é fundamental para apreender este processo e nele não há etapismo histórico ou esquemático e sim, possibilidades concretas que remetem a singularidade de um modo de produção específico no Brasil. Por isso, ele pondera que, essa diferenciação tem que ser levada em conta na medida que no Brasil ocorreram — paralela e contraditoriamente em muitas ocasiões — formas de produção diversas. Sobre esse aspecto, há que estabelecer, como faz questão de sinalizar, uma leitura a partir dos paradigmas conceituais, mas que também, deve ser apreendida a partir da realidade concreta, algo já percebido, por exemplo, no exercício de sua função como oficial do exército no Mato Grosso nos anos 40, um estado particularmente isolado na virada dos anos 30/40.
Paralelamente, Sodré igualmente afirmaria que a definição de uma relação feudal não pode ser somente aprendida pelo quesito renda, mas também pelo laço de dependência social. E neste quesito último é que sugestivamente — dialogando com o autor e sua obra — pode-se remeter para a hipótese de sua existência em formas análogas de trabalho servil nos dias atuais como já sinalizamos em artigo anterior. Essa tese pode ser apreendida ao longo da história brasileira advinda desde a colonização, quando milhares de escravos brasileiros ficaram sob a dependência dos antigos senhores, a partir do momento que estes últimos perderam a condição de senhores com a abolição, mas o fato não transformou os ex-escravos automaticamente em trabalhadores assalariados. Mais recentemente, essa é uma tese que adquire alguma razoabilidade a partir de formas variadas de prestação de serviços nas cidades ou no campo quando a remuneração é, de alguma forma, em espécie.
Nesta linha de interpretação, a segunda mediação refere-se a uma categoria de análise original inserida neste processo histórico e que, curiosamente, também adquire certo grau de razoabilidade contemporânea. Vamos por partes: a partir do decréscimo da escravidão e a conseqüente abolição em perspectiva já no final do Império resultou em um processo de transição por ele denominado de ' Regressão feudal ', que, se veio a ser uma particularidade de nosso processo histórico; concomitantemente, também podemos apreender sua ocorrência contemporânea a partir de uma característica correlata e quase não alterada ao longo de nossa história: o monopólio da terra. Esse processo e o quadro fundiário já era uma característica da fase da independência, quando a classe senhorial brasileira, herdeira de um aparelho burocrático e ideológico, conseguira estruturar nacionalmente o Estado brasileiro, a despeito das muitas tentativas de rebelião regionais ou mesmo debilidades de várias ordens onde o poder público esteve ausente.
Por essa razão, ocorre na segunda metade do século XIX e já objetivando uma saída do trabalho escravo que se configurava em um horizonte não muito distante, a transição para a incorporação de novas áreas a etapa de servidão paralelamente ao avanço do trabalho livre, sendo que, neste processo a população escrava evoluiu em ambas, em que pese, quanto ao último (trabalho livre) de forma reduzida e lenta. O trabalho livre fora naquela ocasião quase que expressão somente da imigração. Mas, o avanço que se verificou o processo capitalista no Brasil daquele período ocorreu osmoticamente com a intocabilidade da questão fundiária e que, teve por resultado — na sua leitura — o fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime de servidão e ou semi-servidão. Isso significou em outras palavras, uma conseqüente alteração das relações de trabalho escravo que ' evoluiu ' para uma outra específica que pode ser até admitida como livre, mas não necessariamente assalariada . Daí o fenômeno que resultou no fim da abolição, dissociado do equacionamento da questão fundiária em sua interpretação na Regressão Feudal, em uma relação de trabalho característica da servidão.
Como sinalizado, muitas dessas reflexões foram pautadas num primeiro momento na sua vasta experiência como militar que serviu em lugares distantes e isolados no Brasil dos anos 30 e posteriormente, na condição de intelectual, e que seria fundamentada com uma análise mais elaborada em que o autor operou com categorias marxistas, estando Werneck Sodré inserido no intenso debate político nacionalista dos anos 60. De qualquer forma, em muitas daquelas reflexões, Sodré demonstraria a factibilidade dessa tese pela presença de outras expressões daquilo que sinalizou como possibilidades de um feudalismo não codificado, expresso nas oligarquias regionais e locais, nas forças paramilitares, nas fazendas e currais eleitorais.
Curiosamente, nada sugestivo de sua ausência no Brasil ou mesmo da presença de aspectos correlatos à Regressão Feudal expressos ainda nos dias de hoje. Na medida que também encontramos formas de trabalhos entendidas como características do regime da servidão e paralelas àquelas, podemos sinalizar como servis ou próximas, outras similares nos centros urbanos e nas áreas rurais, já que o pagamento é em grande medida espécie ou nem isso (leia-se, não há relação monetária ou assalariada); podemos avaliar a hipótese de sua operacionalização — a Regressão Feudal — como uma das categorias factíveis na reflexão sobre o feudalismo no Brasil; sem deixar de mencionar a escandalosa existência de formas análogas de trabalho escravo no campo brasileiro ao longo do século XX.
Mas isso tudo ainda está presente na virada do século XXI quando a agenda política e social sugere que esta pouco se diferenciou daquela dos anos 60, em especial, quando percebemos a ausência de uma reforma agrária e a conseqüente manutenção do quadro fundiário; a lacuna de um debate sobre um projeto de nação associado a um componente popular; a presença do imperialismo atuando de várias formas, particularizando desta vez um olhar — ecológico ou indígena — sobre a Amazônia brasileira, bem como em outros setores da economia nacional; enfim uma agenda daquilo que Sodré denominou como um longo processo de uma fase histórica de nossa inconclusiva e necessária Revolução Brasileira. Uma idéia, um projeto nacional, democrático, um sonho de se batalhar e construir...
1.Texto Publicado em: A Nova Democracia. Ano IV. nº 28, janeiro de 2006. Feudalidade e semifeudalidade em Nelson Werneck Sodré
terça-feira, julho 08, 2008
Intelectuais Brasileiros & Marxismo
Para podermos começar a avaliar o papel desempenhado por Caio Prado Júnior na história do marxismo no Brasil, precisamos reconstituir, de algum modo, as condições em que se deu a sua entrada na cena histórica. Qual era o quadro em que ocorreu o aparecimento da Evolução política do Brasil?
No prefácio que escreveu para a primeira edição da obra, Caio Prado Júnior advertiu que não se tratava de uma “História do Brasil”, mas de uma “síntese”, de “um simples ensaio”. Admitiu, contudo, que se serviria de um “método relativamente novo”, que era a “interpretação materialista”.
O advérbio “relativamente”, posto antes do adjetivo “novo”, constituía uma expressão de modéstia, talvez também o reconhecimento de que filosoficamente é raro o novo se apresentar em estado “puro” (é difícil o absolutamente novo), mas, em todo caso, abria caminho, igualmente, para o reconhecimento de que a “interpretação materialista” tivera, entre nós, antes da Evolução política do Brasil, alguns precursores.
Há, por exemplo, o caso do professor de latim Antonio Piccarollo, italiano, que chegou ao Brasil em 1904 e em 1908 já se dispôs a escrever uma síntese da evolução histórica e da situação política do Brasil, publicada no manifesto programático do Centro Socialista Paulistano. Mas o materialismo de Piccarollo era um materialismo mecanicista, que não tinha muito a ver com a “interpretação materialista” a que depois Caio Prado Júnior viria a se referir: Piccarollo dissolvia a dialética no evolucionismo, combinava elementos do folheto de Engels Do socialismo utópico ao socialismo científico com a idéia de que nem a natureza nem a história podem realizar saltos. Sua perspectiva subordinava a mudança à continuidade.
Há, também, o caso do jornalista Antonio dos Santos Figueiredo, intelectual socialista independente, autor do livro A evolução do Estado no Brasil, publicado em 1926. o materialismo de Antonio dos Santos Figueiredo, contudo, pagava elevado tributo às facilidades do ecletismo, que dissolviam a coesão interna do pensamento e permitiam a mistura de Marx com o historiador Henri Sée, discípulo de Werner Sombart. Além disso, o materialismo de Antonio Figueiredo era meramente contemplativo, constatativo, e por isso se deixava absorver por um pessimismo paralisador, que correspondia à situação de um sujeito que não enxergava nenhuma possibilidade de intervenção no movimento do real, limitando-se a deplorar que esse movimento não se realizasse como devia.
Em certo sentido, o materialismo de Antonio Figueiredo lembrava o de Feuerbach e merecia as críticas que Marx tinha feito ao autor de A essência do cristianismo. Faltava ao brasileiro, como faltava ao velho filósofo alemão, uma compreensão materialista da práxis humana, da ação material pela qual os sujeitos humanos estão sempre modificando a realidade objetiva e se transformando a si mesmos: o materialismo deles ficava restrito ao plano da existência de objetos maciços, densos, movidos por uma força própria, assustadoramente imunes ao poder revolucionador dos homens.
Não sei se Caio Prado Júnior sabia da existência de Antonio Piccarollo, nem se ele havia lido o livro de Antonio Figueiredo quando escreveu Evolução política do Brasil. Na medida, porém, em que tinha se interessado pelo marxismo, é provável que o nosso historiador tenha ouvido falar de Octávio Brandão, o farmacêutico autodidata que se havia transformado no principal teórico da agremiação que congregava as poucas centenas de pessoas que, no Brasil dos anos vinte, aderiam ao ideal comunista de Marx: o Partido Comunista do Brasil.
Em 1924, Octávio Brandão escreveu o livro Agrarismo e industrialismo, que só pôde ser publicado em 1925, indicando como autor um fictício Fritz Mayer e como lugar da publicação (ardilosamente, para driblar a repressão) a cidade de Buenos Aires, na Argentina. A obra serviu de base para o programa que o PC adotou na segunda metade dos anos vinte. Teria Caio Prado Júnior tomado conhecimento do documento programático dos comunistas brasileiros? Teria ele lido o texto de Octávio Brandão? Não sei. Mas a ressalva sugerida em sua caracterização do método materialista como “relativamente novo” pode se referir, implicitamente, ao esforço pioneiro realizado por Brandão.
De qualquer modo, a interpretação materialista da história, em Agrarismo e industrialismo, não correspondia àquilo que Caio Prado Júnior buscava em seu ensaio. Brandão, fascinado por Lênin, esforçava-se por completar o materialismo com a dialética, para torná-lo mais conseqüente, para permitir que a práxis revolucionária dos homens também fosse pensada em termos materialistas. Sua dialética, entretanto, ficava prejudicada por uma formalização exarcebada, de tipo positivista. Era uma dialética que – conforme procurei mostrar em artigo anterior, neste volume –, ficava reduzida ao esquema triádico de Hegel (tese, antítese, síntese), que era esquematicamente aplicado, como fórmula definitiva e universalmente válida, pronta e acabada, a uma gama notavelmente vasta de processos históricos particulares, tais como a história do levante militar de 1924, a história do movimento operário brasileiro, os quatro séculos de transformação da sociedade brasileira e os vinte e tantos séculos de transformação da sociedade italiana (que então se achava sob o controle dos fascistas de Mussolini).
O grande desafio, para um materialismo dialético, sempre foi o de pensar a relação entre a força transformadora (e autotransformadora) do sujeito e a força inerente ao movimento mecanicista ou do chamado “evolucionismo vulgar”, a criatividade do sujeito se esfuma e se dissipa, desaparece o espaço em que a iniciativa do sujeito poderia desempenhar um papel realmente significativo, o movimento subjetivo tende a se reduzir a um epifenômeno, a um apêndice do movimento objetivo: os homens passam a ser marionetes, bonecos manipulados pelo crescimento das forças produtivas e por uma estranha dinâmica cega derivada das relações de produção. O ser social não só determina a consciência (como ensinou Marx), mas também a determina de forma unívoca, direta e imediata.
Por outro lado, não é casual que, ao longo da história, o reconhecimento da importância da ação específica do sujeito tenha ocorrido, com enorme freqüência, no campo do idealismo filosófico. Se o vigor criativo dos sujeitos humanos minimizar; por um momento que seja, o peso do condicionamento material em que a intervenção subjetiva se realiza, a criatividade humana deixa de ser efetiva, torna-se mítica, escorrega para a afirmação inócua do “voluntarismo”, que é uma modalidade de idealismo.
Octávio Brandão não se mostrou capaz de enfrentar o desafio que se punha no caminho de um materialismo dialético. Quando tentava discernir os “lugares” em que a vontade transformadora dos sujeitos revolucionários poderia se impor, encontrava dificuldades e seu discurso se tornava enfático porém vago. Há uma passagem de Agrarismo e industrialismo, aliás, que evidencia a impotência do autor para encaminhar uma solução adequada aos problemas que o preocupavam: não conseguindo formular indicações suficientes para as possibilidades da ação revolucionária aqui dentro, no âmbito da realidade brasileira, ele se consola através da convicção de que as chances da revolução viriam de fora, da situação mundial, já que o mundo, a seu ver, estava transformado num “vulcão prestes a explodir” e, na primeira ocasião, um conflito entre o imperialismo inglês e o imperialismo norte-americano desencadearia “uma guerra formidável na América do Sul e no mundo inteiro”. Não se pode ignorar nessa visão o ânimo de combate e o pressentimento valioso de uma nova guerra que depois explodiu em 1939; porém o ímpeto do lutador estava mal pensado e o presságio encerrava um equívoco óbvio (e sintomático): a “guerra formidável” não se deu entre norte-americanos e ingleses (que combateram juntos contra os alemães), nem ocorreu “na América do Sul”, a não ser em episódios menores.
Caio Prado Júnior não podia se apoiar no materialismo de Octávio Brandão; seu projeto obrigava-o a ir além dos horizontes teóricos do combativo intelectual “oficial” do Partido Comunista. A perspectiva materialista da Evolução política do Brasil exigia que o historiador reconhecesse simultaneamente toda a dureza das condições objetivas e todos os empenhos subjetivos que cabiam no quadro constituído pela objetividade, pela sociedade brasileira.
Caio Prado Júnior não olhava para o mundo como o lugar de onde viria uma catástrofe redentora (a guerra): a situação lá fora era, para ele, a situação do mercado mundial, que deveria ser avaliada em função da nossa situação interna, isto é, das vicissitudes do nosso modo de produção. Nossos problemas eram os problemas da nossa sociedade e da nossa articulação com o mercado mundial.
Objetividade e subjetividade estavam mutuamente imbricadas uma na outra; e a predominância das condições objetivas não poderia dissipar a irredutibilidade dos momentos subjetivos que marcam a história. Caio Prado Júnior, logo no começo do seu ensaio, examinava as questões impostas objetivamente aos homens (portugueses) pela colonização e se dava conta das iniciativas – subjetivas – que eles tiveram para fazer face às circunstâncias: ele se referia, por exemplo, à tentativa representada pelas capitanias hereditárias, e observava que ela não tinha sido eficaz: “este ensaio de feudalismo não vingou”. Havia a necessidade da colonização (objetiva), havia as circunstâncias (objetivas) drasticamente difíceis para um país de pequena população e escassos recursos, como Portugal, e houve, também, a iniciativa da malograda feudalização (o momento subjetivo).
Em outro período da nossa história, lembrado pelo ensaio, o método de Caio Prado Júnior, sua interpretação materialista, nos permite perceber claramente suas características fundamentais: a vinda de Dom João VI com sua corte para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, desencadeia objetivamente o processo de mudanças que haveria de resultar na nossa independência política; por suas peculiares condições objetivas, esse processo descartou a luta armada que, em outros países do continente, viabilizou a conquista da autonomia; no entanto, a concretização da independência, entre nós, dependeu da mobilização subjetiva da classe dos proprietários rurais que podiam promover o movimento separatista.
A situação objetiva impõe, a cada passo, limites aos movimentos subjetivos. A massa escrava, que chegou a representar metade da população do Brasil num certo período da época colonial, era mantida em estado de divisão e desarticulação, impossibilitada – objetivamente – de constituir uma massa coesa; por isso, era incapaz de desempenhar, naquelas circunstâncias, um papel político (subjetivo) de real importância. No entanto, o ímpeto rebelde subjetivo, cercado e reprimido, nem por isso desaparecia: algo dele ecoava em expressões de insatisfação e revolta que se manifestavam em outras áreas, e que teriam influenciado o movimento de 26 de fevereiro de 1821 que levou Dom Pedro a reorganizar seu mistério com políticos de prestigio popular, no Rio de Janeiro.
Essa é a concepção de Caio Prado Júnior: nem a história se faz por si mesma, automaticamente, nem os homens a fazem de maneira arbitrária, impondo-lhes desenvoltamente seus desígnios. Marx já havia ensinado, antes, que cada geração, ao surgir, se vê posta diante de problemas herdados da ação das gerações precedentes, e é compelida a viver numa situação que não foi por ela livremente escolhida; no entanto, a reação da nova geração em face do quadro que lhe foi imposto não é predeterminada, comporta variações, passa por escolhas, depende de opções. O historiador materialista comprometido com um projeto revolucionário precisa reconstruir o quadro, compreender os problemas postos pela vida, avaliar as condições materiais, para poder entender criticamente as iniciativas, as propostas, os anseios, o ânimo com que os homens se movem na arena de luta na qual se vêem colocados.
Caio Prado Júnior assimilou essa dimensão do pensamento de Marx e por isso foi capaz de aplicar pioneiramente, entre nós, a concepção da história elaborada pelo autor d’O Capital. Para podermos avaliar como há de ter sido difícil essa conquista, devemos lembrar que, no começo dos anos trinta, no centro do movimento comunista mundial, estava se cristalizando uma codificação doutrinária – o “marxismo-leninismo” – que impunha pesados sacrifícios à dialética marxiana original. O autor da Evolução política do Brasil, como comunista que era, não ficou imune ao charme da União Soviética (conforme se vê no livro URSS, um novo mundo, de 1934). Não se notam, entretanto, em sua “interpretação materialista” da história do Brasil, as marcas mais evidentes do estilo que o stalinismo conferiu ao “marxismo-leninismo”, como, por exemplo, o esvaziamento da subjetividade (reduzida à liderança do partido revolucionário e praticamente negada às massas populares), o primado de uma objetividade cega (a inexorabilidade da marcha para o socialismo, sustentada por um conjunto de fórmulas dogmáticas), uma esquematização empobrecedora de todas as contradições, uma atitude de feroz reserva em face do “novo” e das surpresas que lhe são inerentes, bem como o recurso sistemático a um bem montado arsenal de citações legitimadoras. O marxismo utilizado pelo nosso historiador não tinha nada disso e se combinava com uma extraordinária abertura para o ineditismo da aventura brasileira. Paulo Sérgio Pinheiro chegou a escrever: “O marxismo de Caio Prado não é o recitativo de fórmulas ou citações, mas uma via de interpretação de um viajante infatigável e implacável pela realidade de seu próprio país e de seu tempo” (Isto É, 7-7-1982).
Caio Prado Júnior, em 1933, realizou uma autêntica façanha, ao superar o obstáculo interno, constituído pelas graves insuficiências teóricas de seus predecessores brasileiros no campo da “interpretação materialista”, e ao escapar da pressão externa, decorrente da codificação oficial do “marxismo-leninismo”.
É verdade que a reflexão marxista pessoal e independente que permitiu a elaboração da Evolução política do Brasil (e depois permitiria o preparo do esplêndido Formação do Brasil contemporâneo) não conseguiu se cristalizar em resultados filosóficos satisfatórios, no esforço que Caio Prado Júnior realizou para explicar a fundamentação gnosiológica de suas investigações. Independentemente das divergências que se manifestam entre os críticos de Caio Prado Júnior na avaliação da Dialética do conhecimento e das Notas introdutórias à lógica dialética, parece-me que predomina na impressão dos leitores do grande historiador paulista uma certa decepção: os dois trabalhos ficam aquém dos ensaios anteriormente publicados. Ao se debruçar sobre si mesma, reflexivamente, a teoria não conseguiu produzir textos tão bem sucedidos como aqueles em que se aplicou à pesquisa histórica.
Mas também é verdade que o êxito alcançado pela teoria aplicada não se perdeu. Evolução política do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo não são apenas momentos brilhantes da nossa história escrita, não contêm somente ricas observações empíricas: são obras capazes de suscitar estudos metodológicos surpreendentemente enriquecedores, cheios de implicações teóricas. Evolução política do Brasil, então, mais do que “um simples ensaio” (como modestamente o classificou seu autor) é um marco na história do marxismo no Brasil.
O simples fato de que a obra de estréia de Caio Prado Júnior tenha sido escrita, tenha sido publicada e se tenha tornado acessível a todos, nos obriga a um rigor crítico maior no julgamento das interpretações que os marxistas brasileiros posteriores fizeram da realidade brasileira: em diversos aspectos decisivos, tais interpretações constituíram um grave retrocesso em relação ao livro de 1933, um recuo para uma perspectiva materialista “vulga”, um restabelecimento de esquemas sociológicos de tipo “positivista” e uma adaptação mental à ideologia sancionada pela direção do Partido Comunista da União Soviética.
O aparecimento da Evolução política do Brasil era a comprovação inequívoca de certas possibilidades de reflexão crítica sobre a realidade brasileira que os marxistas, no Brasil, ao longo das duas décadas que se seguiram à publicação, não souberam aproveitar.
Revolução
segunda-feira, julho 07, 2008
Florestan Fernandes e a idéia de revolução burguesa no pensamento marxista brasileiro[1]
A idéia de revolução burguesa é consubstancial ao próprio desenvolvimento do marxismo no Brasil, conhecendo seus momentos de ascensão teórica ou de declínio prático, de projeção exclusiva no establishment intelectual ou de concorrência com outros modelos analíticos típicos da academia, pari-passu aos progressos teóricos ou percalços práticos da ideologia marxista no País. Essa noção perpassa grande parte da produção intelectual situada no campo teórico do marxismo, alcançando seu ponto máximo, enquanto “tipo-ideal” da conceitualização marxista sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro, na obra do sociólogo Florestan Fernandes. O sociólogo paulista foi um dos mais brilhantes representantes do marxismo acadêmico no Brasil, elevando a interpretação marxista da história brasileira a um plano certamente elevado de conceitualização, sobretudo com o clássico A Revolução Burguesa no Brasil.
Depois do grande triunfo da “concepção marxista da História” na academia brasileira, entre os anos 50 e 80 — movimento coincidente com as vitórias materiais, militares e ideológicas do “socialismo realmente existente” —, o abandono teórico da idéia de revolução burguesa parece ter sido acelerado pela derrocada econômica e política dos países que, entre os anos extremos de 1917-1945 e 1989-1991, encarnaram a suposta materialização prática das idéias marxistas, países estes que curiosamente iniciam, ou retomam, em princípios dos anos 90, suas próprias “revoluções burguesas” práticas. [1] Mas, antes mesmo do “final da História” e da erosão prática do socialismo real, [2] a concepção da revolução burguesa como noção explicativa do desenvolvimento capitalista no Brasil vinha sendo substituída por novos modelos teóricos, alguns baseados na idéia gramsciana de “revolução passiva”, outros na abordagem “bismarckiana” da revolution von Oben e da modernização conservadora, outros ainda, de forma mais incisiva e original, pela afirmação de uma vertente reacionária e mesmo autocrática da revolução burguesa no Brasil, típica do capitalismo dependente da periferia latino-americana. Esta última concepção, de evidente paternidade “florestânica”, representa, na verdade, uma inversão do modelo original marxista e uma espécie de inovação conceitual sobre as concepções tradicionais a respeito da revolução social no Brasil, mas ela representa, de fato, o final da parábola da idéia de revolução burguesa no Brasil.
O movimento dessa parábola “teórica” no Brasil não é, evidentemente, linear e previsível como uma equação matemática, nem, como seu equivalente bíblico, apresenta-se desprovido de sinuosidades interpretativas ou de surpreendentes, senão oportunas, correções de rota, algumas explicáveis pela própria história mundial do comunismo, outras impostas pelas conhecidas desventuras da democracia no Brasil. Do ponto de vista teórico, em todo caso, a ascensão e declínio da idéia de revolução burguesa não observou, no Brasil, o timing histórico de outras experiências interpretativas e exegéticas conhecidas na história do marxismo: uma certa defasagem cronológica na importação de conceitos e doutrinas pela elite intelectual brasileira poderia explicar por que certas idéias, mesmo as mais poderosas ou prometéicas, dão a impressão de se encontrar um pouco fora de seu lugar ou deslocadas em seu tempo de realização efetiva. [3] De certa forma, a discussão da idéia de revolução burguesa no Brasil intervém quase um século após os conhecidos debates teóricos do marxismo clássico.
A trajetória prática de uma hipotética “revolução burguesa” no Brasil, por sua vez, não só fugiu aos padrões explicativos desse mesmo marxismo como inovou em termos dos modelos historicamente conhecidos de modernização social e econômica e de transformação política. A Revolução de 1930, por exemplo, a melhor candidata a figurar no panteão ideal de uma revolução burguesa “concreta” no Brasil, não foi um movimento exclusivo da classe burguesa contra uma suposta aristocracia “feudal” nem tampouco se realizou em defesa do industrialismo capitalista contra supostas travas nas relações sociais de produção impostas por uma formação social de base essencialmente agrária. As interpretações simplistas dessa Revolução, baseadas no primeiro esquematismo de fundo marxista, já foram há muito descartadas pela sofisticada historiografia que se desenvolveu no âmbito universitário a partir dos anos 70. [4]
O modelo de “modernização varguista” — que domina o Brasil desde o final dos anos 30 até praticamente o auge do regime militar de cunho industrializante de meados dos anos 70 — não poderia, para sermos estritos em termos de comparabilidade histórica, ser equiparado a uma revolução burguesa. As dúvidas e questionamentos — inclusive por parte de representantes do próprio marxismo acadêmico — são diversos: como e quando, exatamente, teria sido efetivada a hegemonia burguesa na esfera política?; quando essa classe teria transformado de forma radical, ou decisivamente, as relações de produção no campo; em que medida, com que extensão e sob quais condições ela teria colocado as bases de um processo de acumulação capitalista de base autônoma? Como se vê, os contrastes com o “modelo ideal” de revolução burguesa, tal como enunciado na literatura marxista tradicional — como
Mas, esse tipo de situação contraditória — na qual os fatos não se encaixam na modelização teórica marxista — não é certamente exclusivo do Brasil, podendo igualmente ser observado em determinadas conjunturas históricas de “transformação passiva” de antigas sociedades tradicionais, de processos delongados de modernização conservadora, de mudanças sociais enquadradas num contexto de capitalismo tardio, de ausência, enfim, de uma verdadeira revolução burguesa suscetível de romper as alianças espúrias do ancien régime e inaugurar uma nova era de progresso social e incorporação cívica das camadas subalternas ao jogo político-institucional. Foi o caso, talvez, da “revolução passiva” descrita por Gramsci — o transformismo da experiência política que se seguiu à unificação italiana —, da Revolution von Oben da mais aristocrática modernização conservadora alemã — de inspiração bismarckiana e de sustentação junkeriana — ou ainda da transformação Meiji, que combinou aspectos de modernidade e de tradição na ascensão do Japão à era moderna.
Independentemente de suas desventuras práticas ou sucessos teóricos nos países de capitalismo “tardio”, a idéia de revolução burguesa conheceu uma trajetória de relativo prestígio — ainda que essencialmente acadêmica e intelectual — nos países do capitalismo avançado, no quais, finalmente, a “revolução burguesa” era decididamente um assunto do passado e a “revolução proletária” um projeto sem futuro. Paralelamente, a doutrina marxista era posta politicamente à prova nos países do capitalismo periférico, colonial, atrasado ou dependente, nos quais nem a burguesia nem o proletariado estavam preparados para cumprir suas respectivas “missões históricas”. Seu relativo sucesso enquanto força social ou ideológica nestes últimos, inclusive no Brasil, se deve, talvez, à ausência da “verdadeira” revolução burguesa e à falta de transformação real das condições materiais de produção durante boa parte da história contemporânea desses países.
Assim, se as dificuldades práticas de atualização dessa poderosa idéia social diminuíram seu grau de atratividade — de fato sua necessidade histórica — nos países avançados, na periferia geográfica do capitalismo ela permaneceu o terreno de eleição por excelência — ainda que historicamente marginal — dos profetas do desaparecimento inelutável deste último, considerado teórica e materialmente inferior ao modo socialista de produção, este bem mais racional do ponto de vista econômico e socialmente mais justo. O marxismo da periferia, mais do que uma proposta original de socialismo, sempre foi basicamente um anti-capitalismo, tanto mais poderoso quanto o país em causa era mais atrasado do ponto de vista capitalista. Marx e Engels trataram muito pouco da problemática da transição nos países atrasados — apenas alguns artigos de jornal, para condenar os “bárbaros” indianos e chineses, ou os “idiotas” dos mexicanos e espanhóis, que se opunham à marcha do capital e da civilização, um sendo o equivalente do outro —, mas o que se sabe é que eles condenavam irremediavelmente o despotismo asiático ao purgatório do capitalismo europeu, não tendo sido capazes de jamais imaginar que sociedades pré- ou semi-capitalistas pudessem um dia encarnar os ideais elevados e progressistas de um socialismo moral, política e materialmente superior ao sistema que ele estava destinado a substituir.
Constitui um dos maiores paradoxos da história do marxismo o fato de que os únicos países a entrarem no “livro dos recordes” do comunismo realmente existente tenham sido, todos, ou mesmo exclusivamente, sistemas econômicos atrasados do ponto de vista capitalista, nações que jamais conheceram uma “revolução burguesa” prática e que preservaram, contra as recomendações do iniciador da doutrina, sistemas políticos que mais se assemelharam ao despotismo asiático desprezado por Marx do que aos democráticos conselhos operários concebidos a partir das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris. Em todo caso, contrariamente ao programa histórico desenhado por Marx para os proletários e intelectuais socialistas dos países desenvolvidos — isto é, levar a seu termo a “missão histórica” do capitalismo burguês, para só então dar início à era socialista —, foram os intelectuais e “proletários” dos países menos avançados que julgaram ser melhor saltar a etapa histórica da democracia burguesa e do capitalismo empresarial para penetrar de imediato na democracia socialista e na propriedade estatal.
Esses intelectuais — muito poucos proletários legítimos participaram da aventura marxista na periferia — foram, portanto, basicamente anti-capitalistas, falhando no entanto o movimento real do comunismo enquanto partido de massas precisamente devido à crônica e notória insuficiência de capitalismo real em suas formações sociais respectivas. Em contrapartida, foram esses mesmos intelectuais que, na periferia atrasada, produziram algumas páginas brilhantes da teoria social contemporânea, renovando o pensamento marxista e as ciências sociais como um todo. A idéia de “revolução burguesa”, como em todas as outras experiências de capitalismo tardio e de democracia retardatária, encontra-se obviamente no centro da discussão.
Muito embora tenham sido vários os autores dignos de serem citados em qualquer história do marxismo acadêmico no Brasil, três podem ser considerados como intelectuais de primeiro plano, isto é, influentes ao longo do tempo, nesse terreno relativamente bem freqüentado por historiadores, sociólogos, economistas e cientistas políticos: são eles Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes.
Caio Prado, já definido — em mais de um sentido — como um historiador revolucionário, foi provavelmente o mais fecundo dos três, ao dar início a uma reflexão pioneira e inovadora sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira e suas possibilidades de transformação nos quadros do modo de produção capitalista. Werneck Sodré, talvez o mais ortodoxo do grupo, buscou fornecer armas intelectuais para a etapa da revolução nacional capitalista no Brasil, pensada enquanto resultado de uma aliança de classes. Florestan, por sua vez, o mais bem aparelhado conceitualmente, foi um acadêmico integral, dedicado na maior parte da sua vida à elaboração de um pensamento socialista original e criador, que tenta desvendar os segredos e descobrir os caminhos pelos quais se estabelece num país periférico do ponto de vista da economia central uma modalidade particular de capitalismo, dependente e autocrática. Sua trajetória política no final da vida corresponde a uma fase de menor elaboração teórica, durante a qual o “leninismo” instintivo do articulista de jornal deixa de lado a finesse terminológica dos primeiros tempos de funcionalismo sociológico e de weberianismo acadêmico. [5]
Caio Prado, Sodré e Florestan trabalharam na efervescência política e intelectual de suas épocas respectivas, convivendo com outros pensadores igualmente notáveis na maneira de interpretar o Brasil, partilhando uma mesma vocação voltada para a transformação do País. Mas, eles representam seguramente o que de melhor foi produzido em termos de marxismo inovador no Brasil, buscando respostas teóricas ou práticas às dúvidas que uma parte de nossa elite intelectual e política legitimamente entretinha sobre nossas chances de desenvolvimento capitalista nos escombros de uma ordem independente não totalmente liberada das amarras e defeitos estruturais da economia colonial exportadora.
No pós-guerra, uma corrente “nacional-burguesa” — representada por Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Celso Furtado, Ignacio Rangel, Alberto Guerreiro Ramos — e outra “nacionalista” tout court — como Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes de Almeida, João Cruz Costa — formularam interpretações que se aproximaram por vezes da concepção marxista sobre a “revolução burguesa” e chegaram mesmos a conceber projetos “burgueses” de desenvolvimento econômico e social para o País. Mas, as contribuições desses pensadores tinham tendência a diluir a burguesia numa entidade obscura chamada “povo”, quando não privilegiaram categorias quase filosóficas, tais como a “vontade nacional”, no confronto com outras de extração bem mais “materialista” que estavam sendo oferecidas nessa mesma época por pensadores como Caio Prado e Werneck Sodré, precisamente. Outros intelectuais dessa época permanecem numa vertente “culturalista” (Manuel Diegues) ou quase “funcionalista” (Costa Pinto), mas não deixam menos de enriquecer o grande canal da teoria social brasileira
Os anos 60, num movimento paralelo ao do aprofundamento da crise econômica e política do Brasil em fase de industrialização, assistem a um florescimento extraordinário da produção acadêmica, sobretudo em suas vertentes marxista e weberiana, muito embora algumas poucas correntes universitárias de inspiração liberal tenham continuado se desenvolver mesmo nos ambientes mais “contaminados” pela mística da transformação social e das reformas radicais — agrária, urbana, educacional. O exemplo de Cuba e o aparente sucesso da industrialização socialista como via alternativa ao capitalismo dependente e periférico, agitam o debate acadêmico e motivam as pesquisas sobre o Estado, os empresários e as classes sociais por herdeiros de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque ou de Caio Prado. É a voga dos trabalhos monográficos ou de amplo escopo que fazem a revisão crítica da “visão ingênua” que tiveram seus predecessores sobre a marcha do capitalismo no Brasil: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, e muitos outros colegas ou discípulos daqueles founding fathers e seus continuadores na chamada “escola paulista de Sociologia”, onde começava a pontificar, precisamente, Florestan Fernandes.
O que se poderia chamar de “teoria social brasileira” se inspira essencialmente no marxismo, muito embora o ecletismo seja de rigor, com muitas doses de weberianismo acadêmico e algumas pitadas de historiografia francesa. A unidade de pensamento é muito mais aparente do que real. No terreno da historiografia, por exemplo, a escola marxista comportava tanto representantes da corrente ortodoxa como pesquisadores “revisionistas”. No primeiro grupo se situariam os adeptos de uma “etapa feudal” no desenvolvimento histórico da sociedade brasileira. De uma certa maneira, eles seguiam nesse ponto as teses da historiografia tradicional sobre o período colonial. Pela conceitualização que eles fazem do “modo de produção” que teria precedido o capitalismo no Brasil, essa corrente inscreve sem qualquer equívoco uma “etapa burguesa” no quadro da “revolução nacional” que estaria em curso no Brasil desde o final do século XIX (basicamente a partir do final da Abolição). O historiador Nelson Werneck Sodré é, certamente, o representante mais típico da interpretação marxista ortodoxa da “revolução brasileira”.
Mas, o verdadeiro iniciador da historiografia marxista no Brasil, Caio Prado Júnior, era entretanto muito menos ortodoxo nesse particular. Tendo inaugurado a interpretação materialista da sociedade brasileira, esse decano da história econômica e social influenciou, como veremos, mais de uma geração de pesquisadores, desde seu pioneiro Evolução Política do Brasil (1933), passando pela Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e pelo História Econômica do Brasil (1945). Mas, o debate se instala verdadeiramente a propósito de seu livro polêmico A Revolução Brasileira (1966), no qual Caio Prado nega à burguesia brasileira qualquer “papel revolucionário” ou anti-imperialista, como pretendia a “visão etapista” defendida pelo PCB e pelos demais ideólogos da esquerda ortodoxa.
Fora da historiografia, os partidários de uma “revolução nacional” ou “burguesa” são tão numerosos quanto seus adversários, estes recrutados nas mais diversas tendências da esquerda marxista. Alguns, adeptos da tese do “capitalismo desde o começo” ou da “superexploração imperialista”, situando o crescimento e a estagnação capitalistas no contexto do sistema internacional dominante, operam uma redução radical da autonomia social da classe burguesa. Os que adotaram nessa época a concepção relativamente inovadora dita do “subdesenvolvimento satelitizado” — inaugurada por André Gunder Frank e revista pelos teóricos da “dependência”, entre eles Ruy Mauro Marini — atacaram com razão o falso binômio “tradicional-moderno”: não há uma dualidade estrutural entre os setores colonial-exportador e o industrial-capitalista, mas uma só cadeia de exploração imperialista ligando entre elas as atividades econômicas as mais diversas, desde o centro dominante até a periferia dominada. A debilidade “orgânica” da burguesia “nacional” — interpretação que tinha o assentimento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso — seria devida, portanto, não tanto à natureza intrinsecamente perversa dessa burguesia, mas ao caráter deformado, desigual e dependente do desenvolvimento do capitalismo periférico, o que não impediu os mais afoitos de abandonar a hipótese da “revolução burguesa” e de inscrever na agenda da história um projeto de “revolução socialista” (como Wanderley Guilherme ou Theotônio dos Santos, por exemplo).
Outros, colocando mais ênfase no caráter “específico” dos modos de produção dominantes durante as fases colonial e nacional — identificados como sendo o “escravista” e o “dependente” — dividiam-se também quanto ao papel social e político da classe burguesa vis-à-vis o poder do Estado e da potência do imperialismo. A teoria da “dependência” por exemplo — que deriva dos conceitos de centro e periferia já aplicados desde os anos 40 por um economista inovador como Raul Prebisch — constituía uma espécie de “funcional-estruturalismo” aplicado à velha teoria leninista e luxemburguiana do imperialismo: ela buscava combinar a análise classicamente marxista com uma abordagem macro-nacional sobre a interação de sistemas econômicos complementares e desiguais. Os conceitos de “burguesia” e de “Estado” ocupam um espaço preponderante nessas análises — conduzidas, a partir da inspiração de Florestan, por jovens sociólogos como Cardoso, Ianni, Weffort, Cohn — mas o argumento da Revolução burguesa está longe de se constituir em variável analítica independente como na obra do mestre da Escola Paulista de Sociologia: não se nega a possibilidade de uma “hegemonia burguesa”, mas esta permanece limitada pelas “ligações perigosas” mantidas pela elite industrial com a oligarquia e o imperialismo (se fala mesmo de uma “internalização da dependência” na própria estrutura social).
Os anos 70 constituem, paradoxalmente, um período de, por um lado, brutal repressão contra a intelligentsia marxista dos cenáculos acadêmicos e contra seus êmulos guerrilheiristas nas ruas das grandes cidades brasileiras e, por outro, de disseminação das idéias marxistas nas gerações mais jovens, a ponto da “concepção marxista da história” ter-se tornado propriamente dominante nos cursos secundários e nos ambientes universitários. Trata-se, na maior parte das vezes, de um marxismo de ocasião, baseado em algumas poucas idéias mal digeridas de leituras apressadas de vulgatas elaboradas a partir de alguns textos de estilo stalinista de Marta Hannecker ou de cunho “estruturalistas, como
Mas, ao lado desse triunfo do marxismo simplista, estudiosos de renome continuam a produzir uma teoria social digna do nome, basicamente preocupada em encontrar, como seus predecessores liberais de princípios do século, explicações consistentes para as raízes do atraso econômico e social do Brasil. Com exceção do próprio mestre Florestan, a Escola Paulista de Sociologia — Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn, Paul Singer, Francisco Weffort e muitos outros mais — não pode ser exatamente identificada como um templo dedicado ao culto exclusivo do marxismo. Em todo caso, esses intelectuais praticam outras vertentes da doutrina, numa espécie de sincretismo modernizador que não ficaria nada a dever, em termos de pot-pourri litúrgico, à maior parte das religiões brasileiras.
A noção de “revolução burguesa”, elevada ao panteão da ideologia marxista nessa época, continuava a se situar no centro das preocupações da maior parte dos estudiosos. Mas, nem todos professam os instrumentos do culto. A recusa desse modelo pode ser explícita, como no caso do marxista Jacob Gorender, grande estudioso do “modo de produção escravista”: para esse antigo ortodoxo do PCB reciclado no marxismo independente, a revolução burguesa, levando-se em conta algumas particularidades da formação econômica e social do capitalismo brasileiro, seria uma categoria analítica inaplicável à história do País. [6] O afastamento pode ser também tácito, como no caso do sociólogo e cientista político Luciano Martins: ele preferiu passar diretamente à tese “barringtoniana” da “modernização conservadora” para explicar tanto a ausência da hegemonia burguesa no Brasil como a circulação das elites no seio do Estado. [7] Mais recentemente, alguns sociólogos preferiram voltar ao conceito de modo de produção para explicar alguns dos momentos decisivos da passagem ao “Estado burguês” no Brasil. As analogias explícitas ou implícitas em relação ao “modelo ideal” de revolução burguesa transparece no trabalho do principal defensor dessa vertente, Décio Saes: para esse autor, são as classes populares (escravos e classe média urbana) que, como no exemplo da grande revolução “burguesa” da França, sustentam, sem esperar a liderança dos setores dominantes, os processos de transformação do sistema político e da ordem econômica no Brasil de 1888-1891, movimentos que, tomados conjuntamente, conformariam uma Revolução política anti-escravista e burguesa. [8]
Outros teóricos, utilizando muitas vezes o mesmo tipo de conceitualização — capitalismo “tardio” ou “dependente”, manutenção do poder oligárquico, “incapacidade política da burguesia” etc. — colocam a revolução burguesa no centro de seus esforços interpretativos. Evidentemente, a concepção “nacional-burguesa” ou “capital-funcionalista” em vigor no final dos anos 50 — como a do já citado Guerreiro Ramos, para quem a “revolução industrial” então em curso seria uma espécie de equivalente histórico-funcional da revolução burguesa — tornou-se largamente desacreditada. Em contrapartida, as contribuições de marxistas independentes como Florestan Fernandes e Octavio Ianni são muito mais consistentes nesse particular. Ambos autores de uma vasta produção sociológica sobre o Brasil contemporâneo e representantes legítimos da Escola Paulista de Sociologia, Fernandes e Ianni aceitam plenamente o conceito e o modelo da revolução burguesa em suas análises respectivas sobre a formação social brasileira.
É sobretudo a obra do primeiro — ao lado de Caio Prado e de Werneck Sodré — que deve merecer uma atenção particular, tendo em vista que a contribuição de Ianni apresenta a curiosa tendência de conceber a revolução burguesa apenas do ponto de vista do caráter do Estado e de sua organização efetiva no Brasil. O historiador Werneck Sodré permanece provavelmente o mais forte defensor de uma visão classicamente marxista sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira, ainda que a precedência histórica na elaboração de uma interpretação legitimamente marxista do desenvolvimento econômico e social do Brasil esteja com Caio Prado Júnior.
2. Florestan Fernandes e a revolução burguesa na periferia
Florestan Fernandes é, sem dúvida alguma, o representante principal do que se poderia chamar, a falta de melhor designação, de “teoria social brasileira” e sua obra mais importante — A Revolução Burguesa no Brasil — constitui o esforço mais acabado empreendido na academia brasileira para elaborar uma teoria regional do desenvolvimento capitalista na periferia da “economia-mundo” capitalista.
Egresso de uma das primeiras turmas de Ciências Sociais da USP, onde recebeu aulas de mestres franceses — dos quais tornou-se assistente —, Florestan realizou pesquisas sobre o folclore
Mas, nessa primeira fase de sua vida acadêmica, em que atuou como professor assistente de Fernando Azevedo e depois de Roger Bastide, e como responsável pela cadeira de Sociologia-I na USP, Florestan seguiu o ecletismo típico de seus mestres franceses: uma pitada de cada teórico acadêmico — com destaque para Durkheim, Weber e Marx — e um diálogo constante com os grandes mestres contemporâneos: Mannheim, Freyer, Sombart, Tönnies, Linton e vários outros expoentes das escolas européias e norte-americanas. Uma pesquisa sobre as relações raciais
A análise interpretativa dos problemas raciais e das relações de classe no Brasil conduz Florestan ao estudo da formação econômica e social e às especificidades da “transformação burguesa” no País, base ulterior de seu grande trabalho sobre a “revolução burguesa” no Brasil. Com efeito, detentor isolado do copyright do conceito de revolução burguesa na produção sociológica brasileira, o grande intérprete da mudança social
O opus magnum de Florestan, A Revolução Burguesa no Brasil (1975), integra, mediante instrumentos conceituais recolhidos nas melhores fontes da sociologia — sobretudo em Marx, em Durkheim e em Weber —, o essencial da produção historiográfica, sociológica e política relativa aos diferentes aspectos do processo de modernização econômica e social do Brasil. Trata-se, nada mais nada menos, do que interpretar todo o processo histórico de (trans)formação da sociedade brasileira, buscando em nosso passado dependente, escravocrata e periférico — ou seja de capitalismo incompleto e tardio e subordinado ao imperialismo e de insuficiente “mutação burguesa” das estruturas de dominação política — as razões e as raízes das deformações do período contemporâneo, marcadas pela ditadura militar — uma “autocracia burguesa” no entendimento de Florestan — e por um desenvolvimento econômico desigual, retardatário e caudatário dos principais centros da economia mundial.
Florestan Fernandes pretendia, com seu monumental “ensaio de interpretação sociológica”, resumir as principais linhas da evolução do capitalismo e da sociedade de classes no Brasil. Mas, ao colocar no centro de sua interpretação o conceito específico de “revolução burguesa”, a summa sociológica de Florestan não deixa de apresentar algumas especificidades em relação a uma pretendida “filiação” marxista, tanto de forma como de substância. Algumas características propriamente “heterodoxas” dessa grande obra são de natureza estilística: uma redação que se estendeu durante cerca de uma década (1966-1974) justifica provavelmente insuficiências como a ausência de unidade global e de uniformidade no texto, o caráter descosido ou fragmentado de alguns capítulos e mesmo mudanças propriamente conceituais no desenvolvimento do discurso, como a substituição da abordagem classicamente weberiana e durkheiminiana da primeira parte pelo enfoque mais claramente “leninista” dos capítulos finais. A adesão de Florestan ao que ele mesmo chama de “sociologia engajada e radical” faz com que sua análise da “revolução burguesa” no Brasil acuse, em diversas passagens, o dilema entre a objetividade científica e a opção política.
Essa obra constitui, fundamentalmente, uma forma peculiar de utilização da teoria marxista na reconstrução de processos históricos sempre únicos e originais, no caso, a transição brasileira para a modernidade social capitalista, que é vista, por Florestan, segundo a ótica da revolução burguesa. Sua interpretação desse processo permanece, ainda hoje, um marco do pensamento sociológico brasileiro, sendo apresentada, nos muitos escritos de seus epígonos acadêmicos, como um prova mesma da vitalidade do marxismo aplicado à realidade social do Brasil. Entretanto, nessa obra máxima de Florestan, o conceito de revolução burguesa não é qualificado de maneira estrita, nem possui um estatuto teórico muito preciso: passa-se de uma definição sócio-econômica a uma outra essencialmente política desse fenômeno, sem que se possa aferir a parte da “longa duração” e a da “conjuntura histórica de transformação” — para empregar os termos braudeliano e labroussiano bem conhecidos — na atualização brasileira desse conceito. Para Florestan, a revolução burguesa, definida de maneira genérica, constitui “um fenômeno estrutural, que pode se reproduzir de modos relativamente variáveis dadas certas condições ou circunstâncias, desde que certa sociedade nacional possa absorver o padrão de civilização que a converte numa necessidade histórico-social”.
Em outros termos, o argumento de Florestan sobre a atualização histórica da “revolução burguesa” no Brasil assume primeiramente uma qualificação positiva (a da “emergência e consolidação do capitalismo”) para transformar-se, no final, em seu contrário (a “crise do poder burguês”). O equivalente histórico, no Brasil, da conjuratio burguesa seria dado pela agregação ideológica operada no movimento abolicionista. Florestan não adota o método comparativo, senão indiretamente, mas parece consciente dos dilemas e dos limites que o comparatismo coloca ao pesquisador. Ele critica, por exemplo, os que negam a existência de uma “Revolução Burguesa” no Brasil, “como se admiti-la implicasse pensar a história brasileira segundo esquemas repetitivos da história de outros povos, em particular da Europa moderna. O sociólogo paulista estabelece, por exemplo, uma distinção entre o modelo “clássico” de revolução burguesa — que teria conduzido ao capitalismo independente e à democracia política — e a revolução burguesa “periférica” — resultando no capitalismo dependente, na dominação externa e na autocracia burguesa —, mas, ele não diz porque o segundo processo deve ser inserido na mesma família conceitual do primeiro.
A revolução burguesa de Florestan Fernandes apresenta-se, assim, como um paradigma na fronteira externa do capitalismo mundial. Procurando estabelecer que o espécime brasileiro pertence mesmo à família sociológica das revoluções burguesas, Florestan identifica o conteúdo essencial desses fenômenos históricos a um processo de “absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura”, que seria o da civilização capitalista moderna. O paradigma da revolução burguesa se justificaria pelo fato que, no Brasil também se assistiu “a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva”, isto é, ocorreu um simples processo de modernização capitalista.
Florestan reconhece formalmente que o processo de modernização das estruturas sociais, políticas e econômicas das formações capitalistas não tem um único modelo estabelecido. Seria vão, portanto, diz o mestre, pretender no Brasil “uma réplica ao desenvolvimento capitalista característico das Nações tidas como centrais e hegemônicas”. O desenvolvimento capitalista no Brasil, a despeito das limitações internas e externas impostas ao processo, conseguiu, ainda assim, segundo Florestan, provocar uma “revolução econômica autêntica”. Entretanto, devido precisamente à preservação da “dupla articulação” — latifúndio e imperialismo —, não existe “espaço histórico para a repetição das evoluções do capitalismo na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, ou na Alemanha e no Japão”. Ainda assim, segundo o mestre paulista, “um desenvolvimento capitalista articulado não produz uma transformação capitalista de natureza diferente da que se pode observar nas sociedades capitalistas autônomas e hegemônicas. O que varia é a intensidade e os ritmos do processo”. Florestan reconhece, em primeiro lugar, que a “economia competitiva [da periferia] tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o desenvolvimento capitalista autônomo e auto-sustentado”, mas é para concluir imediatamente após: “Todavia, o desenvolvimento capitalista logrado traz consigo, como nas sociedades centrais e hegemônicas, as mesmas tendências de organização e de evolução da economia, da sociedade e do Estado”.
Florestan jamais pretende a repetição, no Brasil, do que ele chama de “modelo democrático burguês de transformação capitalista”, chegando mesmo a negar a existência de “determinantes universais” nesse processo. Ele reconhece no entanto estar à procura das “conexões específicas da dominação burguesa com a transformação capitalista”, nos casos onde a “dupla articulação” foi preservada. Ele propõe o conceito de “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”, que seria típico das formações dependentes do capitalismo periférico. Mais que um conceito, trata-se de verdadeira tese sociológica, e que se constitui no elemento crucial do modelo interpretativo construído por Florestan para explicar a modalidade específica de modernização capitalista no Brasil.
A tese de Florestan possui, implicitamente, duas premissas: primo, que a transformação capitalista apresente, em todos os lugares, um caráter burguês; secundo, que a dominação burguesa é inevitável, independentemente das formas políticas específicas de seu exercício. A implicação mais importante dessas duas proposições não estritamente formalizadas é, entretanto, a de que este modelo de transformação capitalista, apesar de “autocrático”, se inscreve igualmente no quadro conceitual da revolução burguesa.
Florestan destaca a importância primordial da transformação capitalista como fator essencial da mudança histórica nas formações periféricas ocidentais: o crescimento capitalista é real, apesar de dependente. O que a periferia reproduz são as “características estruturais e dinâmicas essenciais” do capitalismo central — isto é, economia mercantil, competitiva, mais valia, etc. — sem as quais ela “não seria capitalista”. A uniformização dos princípios de modernização não exclui entretanto a existência de “diferenças fundamentais” que decorrem do processo pelo qual esse desenvolvimento capitalista torna-se “dependente, subdesenvolvido e imperializado”.
Florestan reconhece a existência dessas “diferenças fundamentais”, típicas do capitalismo periférico, mas insiste em combinar os processos de transformação capitalista, de um lado, e de dominação burguesa, de outro, como se ambos devessem permanecer estrutural e necessariamente ligados nas diversas atualizações históricas concretas da modernização capitalista. A tese de Florestan sobre o “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista” visa transcender o paradigma histórico consagrado sobre a revolução burguesa, representando ao mesmo tempo uma tentativa teórica de explicar os impasses e limitações praticas da modernização capitalista na periferia do sistema. O núcleo da explicação sociológica estaria no “caráter retardatário das Revoluções Burguesas na periferia dependente e subdesenvolvida do mundo capitalista”. No caso brasileiro, por exemplo, a “contra-revolução burguesa” de 1964 e o sistema “autocrático” que se instala ulteriormente seriam o produto inevitável da modernização tardia.
3. Os intelectuais marxistas e a revolução burguesa no Brasil
Vinculados, de uma forma ou de outra, aos combates políticos e sociais de suas respectivas épocas históricas e atuando em contextos políticos específicos, os intelectuais marxistas analisados neste trabalho pensaram a questão da democracia, da revolução burguesa e do desenvolvimento social no Brasil. Essa reflexão foi conduzida segundo um pensamento marxista inovador e propunha, de modo geral, uma inversão radical do tipo de capitalismo seguido até então — considerado submisso aos interesses da oligarquia agrária e dependente do imperialismo — e, de forma coerente com a primeira premissa, uma incorporação das camadas subalternas ao processo político democrático. Todos eles viam no socialismo um objetivo razoável de organização social da produção e um princípio legítimo de estruturação do sistema político, ainda que eles reconhecessem a necessidade de uma lenta acumulação de forças — consubstanciada na idéia de revolução burguesa — antes de que se pudesse pensar em passar à “etapa superior” de modelização da sociedade. Eles foram extremamente influentes nos círculos intelectuais, no pensamento acadêmico de modo geral e no próprio debate público de idéias no Brasil, desde os anos 30 até praticamente nossos dias.
Caio Prado Jr. foi um pioneiro nesse tipo de reflexão radical sobre os destinos econômicos do País e seu regime político, vistos como um sistema industrial em formação e uma democracia possível, mas devendo antes se libertar das amarras do imperialismo e do latifúndio. Nelson Werneck Sodré atuou sobretudo nas hostes nacionalistas — militares e civis — buscando conformar uma agregação política de forças sociais suficiente para romper aqueles mesmos obstáculos identificados por Caio Prado em seus escritos históricos e econômicos. Florestan Fernandes, o mais acadêmico dos três, foi um verdadeiro maître-à-penser do desenvolvimento brasileiro, um tribuno de seus ideais socialistas e um dos maiores sistematizadores da teoria social moderna. Todos eles identificaram na chamada “burguesia nacional” — com os qualificativos políticos que cada um lhe atribuiu — uma força social importante, embora relativamente pusilânime em face dos desígnios, combinados ou não, do latifúndio e do imperialismo, mas, ainda assim, necessária e central à tarefa de transformação econômica e social da Nação. Suas respectivas contribuições intelectuais foram orientadas, de certa forma, a “empurrar” — talvez contra sua própria vontade — a burguesia nacional para um tipo de capitalismo independente e um regime político democrático plenamente participativo.
Uma particularidade desse tipo de raciocínio — derivada talvez da virtual tendência marxista em identificar uma determinada classe social com um “devir” histórico específico — pode ser apontada na conexão de tipo estrutural que se faz entre sistemas econômicos e regimes políticos, como se se tratasse de um modelo de tipo hegeliano, no qual uma determinada categoria social encarna o “espírito” de cada época histórica. Os intelectuais marxistas brasileiros, atribuindo, com Marx, ao capitalismo, uma força social transformadora superior às suas possibilidades históricas efetivas, frustraram-se amplamente ao constatar as debilidades materiais, políticas, sociais e ideológicas de uma classe — a burguesia — que, supostamente, deveria encarnar as principais virtudes e ideais do modo de produção “revolucionário”, de toda forma superior ao sistema monocultor agrarista conhecido até então.
Qualquer que seja o destino futuro do marxismo acadêmico no Brasil, sua trajetória faz parte da própria história intelectual no País, tendo ela sido profundamente marcada pelas contribuições que ofereceram, em seus respectivos campos de atuação, pensadores como Caio Prado, Werneck Sodré e Florestan Fernandes. Eles foram paradigmáticos de uma certa época e plenamente representativos de um determinado debate de idéias, assim como foram, para suas respectivas gerações, “lideranças carismáticas” na descoberta de “campos virgens” de exploração teórica, na condução de pesquisas empíricas, na orientação de leituras, na identificação de caminhos explicativos, na organização científica dos conceitos e outros instrumentos analíticos, na apresentação de “contribuições relevantes”, assim como na própria mobilização política para o “bom combate”. A eles muito deve o vigor da teoria social brasileira nos últimos sessenta anos e sobre sua obra deve repousar, em parte, o esforço de reconstrução de uma teoria histórico-social adaptada ao estágio atual de transformação da sociedade nacional.
[1] Procedi a uma tentativa de análise “marxista”, da derrocada dos regimes de tipo soviético “Retorno ao Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: vol. 35, janeiro-junho 1992, nºs 137-138, p. 51-71). Uma análise “liberal” sobre as razões do sucesso e ulterior erosão da idéia comunista no século XX pode ser encontrada
[2] A referência inevitável aqui é ao artigo original de Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (n° 16, 1989, p. 3-18).
[3] Ver Fernando Henrique Cardoso, As Idéias e seu Lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980).
[4] No Brasil, os trabalhos de Boris Fausto desmontaram grande parte o “charme muito pouco discreto” da concepção tradicional sobre a interpretação marxista da Revolução de 1930; cf. A Revolução de 30: historiografia e história (16ª ed., revista e ampliada; São Paulo: Companhia das Letras, 1997; a 1ª edição é de 1969). No plano mais geral da região, ver, por exemplo, para uma alternativa à concepção social dessa fase revolucionária no continente, o interessante artigo de Ilan Rachum, “The Latin-American Revolutions of 1930: a non-economic interpretation”, América Latina (Rio de Janeiro: ano 17, 1976, pp. 3-17).
[5] Para uma breve reconstituição biográfica-intelectual da carreira e da vida do principal representante da chamada “escola paulista de Sociologia”, ver o livro de Eliane Veras Soares, Florestan Fernandes: o militante solitário (São Paulo: Cortez, 1997).
[6] A ruptura analítica nos textos de Jacob Gorender pode ser exemplificada, numa primeira fase, pelo ensaio “The Brazilian Problem: a Communist View” in Irving Louis Horowitz, Revolution in Brazil: Politics and Society in a Developing Nation (New York: E. P. Dutton, 1964, p. 328-41), que consagra a noção marxista tradicional da necessidade de uma revolução burguesa no Brasil, ao passo que
[7] Luciano Martins, Pouvoir et Développement Économique: formation et évolution des structures politiques du Brésil (Paris: Anthropos, 1976).
[8] Cf. Décio Saes, A Formação do Estado Burguês no Brasil: 1888-1891 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985).
Orientações de leitura sobre Florestan Fernandes:
Almeida, Paulo Roberto de. Classes Sociales et Pouvoir Politique au Brésil: une étude sur les fondements méthodologiques et empiriques de
———. “O Paradigma Perdido: a Revolução Burguesa de Florestan Fernandes”, in Maria Angela d’Incao (org.), O Saber Militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes (São Paulo-Rio de Janeiro: UNESP - Paz e Terra, 1987, pp. 209-229)
Fernandes, Florestan. A Etnologia e a Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958)
———. Mudanças Sociais no Brasil (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960)
———. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo (São Paulo: Anhambi, 1961)
———. A Sociologia numa Era de Revolução Social (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963
———. A Integração do Negro na Sociedade de Classes (São Paulo: Dominus-USP, 1965);
———. Educação e Sociedade no Brasil (São Paulo: Dominus-USP, 1966)
———. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1968)
———. The Latin American in Residence Lectures (Toronto: University of Toronto, 1969-70)
———. O Negro no Mundo dos Brancos (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972)
———. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1973)
———. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Rio de Janeiro: Zahar, 1974)
———. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional” (São Paulo: Hucitec, 1975)
———. “A Revolução Burguesa no Brasil em Questão”, Contexto (São Paulo: ano I, n° 4, 1977, pp. 141-8)
———. A Sociologia no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1977)
———. A Condição do Sociólogo (São Paulo: Hucitec, 1978)
———. Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana (São Paulo: T.A. Queiroz, 1979)
———. Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo” (São Paulo: Hucitec, 1979)
———. A Natureza Sociológica da Sociologia (São Paulo: Ática, 1980)
———. Poder e Contrapoder na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1981)
———. Reflections on the Brazilian Counter-Revolution: essays (New York: M. E. Sharpe, 1981)
———. “Esboço de uma trajetória”, depoimento concedido a equipe coordenada pela Prof. Mariza Correa, em 29 de março de 1984, Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (Rio de Janeiro: ANPOCS, n° 40, 2° semestre 1995, pp. 3-25)
Morse, Richard M. “A Economia de Manchester e a Sociologia Paulista”, Dados (Rio de Janeiro: n° 18, 1978, pp. 3-56)
Nascimento Arruda, Maria Arminda do. “Arremate de uma reflexão: a Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes”, Revista USP; dossiê Florestan Fernandes (São Paulo: n° 29, março-maio 1996, pp. 56-65)
Santiago, Silviano. “A Revolução Burguesa”, Contexto (São Paulo: ano I, n° 2, 1977, pp. 149-153)
Outros textos sobre o marxismo e o comunismo na América Latina:
Almeida, Paulo Roberto. Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999)
Aricó, José. Marx e a América Latina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982)
———. The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992)
Cardoso, F. H. e Enzo Faletto. Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1970)
Gorender, Jacob. A Burguesia Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1981)
———. O Escravismo Colonial (São Paulo: Ática, 1978)
———. “O Conceito de Modo de Produção e a Perspectiva Histórica” in José Roberto do Amaral Lapa (ed.): Modos de Produção e Realidade Brasileira (Petrópolis: Editora Vozes, 1980, pp. 43-65)
———. “The Brazilian Problem: a Communist View” in Irving Louis Horowitz, Revolution in
Guerreiro Ramos, Alberto. O Problema Nacional do Brasil (Rio de Janeiro: Saga, 1960)
Gunder Frank, Andrew. Capitalism and Development in
Hobsbawm, Eric, Georges Haupt, Franz Marek, Ernesto Ragionieri, Vittorio Strada e Corrado Vivanti, Storia del Marxismo (Torino: Einaudi, 1979-1983; vv. vols.)
Ianni, Octavio. “O Ciclo da Revolução Burguesa no Brasil”, Temas de Ciências Humanas (São Paulo, n° 10, 1981, 1-34)
———. O Ciclo da Revolução Burguesa (2a ed.: Petrópolis: Editora Vozes, 1985)
Lowy, Michael. Le Marxisme en Amérique Latine de 1909 à nos jours: anthologie (Paris: Maspéro, 1980)
Marini, Ruy Mauro. Subdesarrollo y Revolución (México: Siglo XXI, 1969)
———. Dialectica de
Martins, Luciano. Pouvoir et Développement Économique: formation et évolution des structures politiques du Brésil (Paris: Anthropos, 1976)
Marx, Karl. Contribution à
———. Oeuvres I: Économie (Paris: Gallimard, 1968)
Miceli, Sérgio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil (São Paulo: Vértice, 1989)
Moore Jr., Barrington. Poder Político e Teoria Social (São Paulo: Cultrix, 1972)
———. Social Origins of Dictatorship and Democracy: Lord and Peasant in the Making of the Modern World (Harmondsworth: Penguin, 1979)
Motta, Fernando C. Prestes. Empresários e Hegemonia Política (São Paulo: Brasiliense, 1979)
Santos, Theotônio dos. Socialismo o Facismo: el nuevo caracter de
———. “The Crisis of Development Theory and the Problem of Dependence in Latin America” (1969) in Henry Bernstein (ed.), Underdevelopment and Development: the
Schwartzman, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro (Rio de Janeiro: Campus, 1982)
Silva, Angelo José da. “Agrarismo e industrialismo: uma primeira tentativa marxista de interpretação do Brasil, Revista de Sociologia e Política (Curitiba, UFPR: nº 8, 1997, pp. 43-54).