segunda-feira, agosto 04, 2008

Entrevista Chico de Oliveira: A esquerda não chegará nunca ao poder

Sérgio Montenegro Filho
e Paulo Sérgio Scarpa
Do JC


Um dos fundadores do PT, o sociólogo Chico de Oliveira, hoje no PSOL, não vê a eleição deste ano como termômetro para 2010

Utilizar a disputa municipal de 2008 como termômetro para avaliar as chances do governo de fazer o sucessor em 2010 é um lance arriscado do Palácio do Planalto. A advertência é feita pelo cientista político Chico de Oliveira. Fundador do PT - com quem rompeu após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegar ao poder -, e hoje filiado ao PSOL, ele defende uma tese diametralmente oposta à do governo quanto à associação da imagem dos candidatos petistas à de Lula. Acredita que em alguns municípios isso pode trazer mais prejuízo que lucro eleitoral. Mas também desaconselha candidatos de oposição a baterem no presidente, por conta da boa avaliação da sua popularidade. Professor de sociologia da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas em estudos políticos do País, Chico de Oliveira é considerado um dos últimos intelectuais da "esquerda pura", embora afirme sem meias palavras que essa esquerda jamais chegará ao poder. Ele esteve no Recife e concedeu esta entrevista exclusiva ao JC OnLine, na qual diz que, no Brasil, ser governista tornou-se uma tradição e afirma ser improvável uma aliança PT/PSDB para 2010, embora admita que os partidos têm perfis muito semelhantes, centrados na social-democracia.

Como o senhor vê essa tese de que a eleição este ano seria um plebiscito para 2010?
CHICO DE OLIVEIRA - Engana-se quem fizer da eleição municipal um termômetro, porque uma eleição majoritária nacional ganha outro caráter, e tanto as pequenezas como as grandezas de uma eleição municipal, na eleição nacional podem mudar de sentido. E o político que faz isso revela um grande desconhecimento dos mecanismos da política. Lula não será exceção, por mais que ele se vanglorie de fazer o que faz, não sabe, não. Sobretudo nas grandes capitais, esse é um lance arriscado. Em São Paulo, Marta Suplicy está muito bem. Surpreendentemente, porque ela teve uma erosão de credibilidade muito forte, mas se ela se associar muito a Lula, a candidatura pode naufragar.

Essa associação com Lula já está no Recife, com João da Costa dizendo-se o candidato do presidente. Isso não muda conforme o perfil sócio-econômico do eleitor?
CHICO - Sim. Nas cidades mais ricas, essa associação não tem causalidade positiva nenhuma, digamos. Pré-eleitoralmente, pode até se revelar a tempo, mas será uma surpresa. Ela não reforça a candidatura. Nas eleições passadas, para prefeito de São Paulo, quando Marta tentou associar muito seu nome a Lula ela foi derrotada precisamente por isso, porque Lula estava na época com péssima avaliação por causa dos escândalos. Na época, eu ainda tinha contatos com gente do PT e dizia para não fazer isso porque iriam se arrebentar. Os humores eleitorais de São Paulo não estavam para isso. Eles fizeram, Lula foi lá e foi pior para Marta.

Tem uma estratégia dos candidatos de oposição ao PT de não bater em Lula temendo uma queda. Isso está acontecendo aqui...
CHICO - Anti-Lula não é bom em nenhum lugar. Mesmo em eleitorados que são majoritariamente anti-Lula, não é bom bater, porque a avaliação do governo dele não é ruim, você perde votos em vez de ganhar. Mas os candidatos que fazem estratégia de criticar o governo, mas não Lula. É melhor criticar só a administração porque a popularidade do Lula está desassociada de seu governo em muitas partes do País, como no Nordeste.

Como o senhor avalia a popularidade alta de Lula, após os escândalos do primeiro mandato?
CHICO - A avaliação positiva tem vários fatores, como o relativo êxito econômico. O principal, é que é relativo, porque não é nenhuma maravilha um crescimento que, para as condições brasileiras, é medíocre. Ele não tem muito do que se vangloriar. Em segundo lugar, dizem, que o Bolsa Família exerce um fator positivo na avaliação, mas não em todas as regiões. exerce, sobretudo, nos Estados mais pobres, como os do Nordeste. Em São Paulo, por exemplo, o programa não tem maior relevância.

Ninguem quer mais ser oposição nesse País? Todos querem se beneficiar com alguma fatia do governo Lula?
CHICO - Isso é uma tradição brasileira, não é parte do sistema partidário não. Faça o que quiser, reforme o que quiser, isso faz parte da formação da política, que você não anula de um dia para o outro. Uma coisa importante é que os dois partidos que surgiram tentando modificar essa cultura política, o PT e o PSDB, se aliaram aos demais. Não é fácil desfazer-se de uma velha cultura política patrimonialista. Depois, percorra toda a história política passada e verá que pouca gente ficava na oposição. Mesmo Getúlio Vargas, que foi um governo muito marcante com uma oposição muito definida, coptava membros da UDN. Em Pernambuco, Vargas coptou o udenista João Cleófas, que acabou ministro da Agricultura dele. Isso porque o Estado brasileiro tem um peso muito grande. A caneta de um presidente no Brasil pode mexer em 20 mil postos do Estado. Na França, o presidente mexe em 300, assim como na Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. A França tem uma velha burocracia estatal muito bem estabelecida, onde não existe cargo de confiança, mas cargo de carreira. E ninguém pode mexer naquilo. A França que é um país com um PIB três vezes superior ao do Brasil. Quem é que não quer então estar no governo? É muito mais fácil manejar verbas, fazer coalizões locais, isso faz parte da mais antiga história poltica brasileira. Lendo a biografia de Joaquim Nabuco, que foi um estadista, você vê que em Pernambuco não se elegia ninguém sem o apoio de um cacique.

O PT e o PSDB tentaram uma aproximação aberta em Belo Horizonte (MG) e, depois, Lula mandou um recado a FHC, para conversar. Haverá, enfim, essa aproximação?
CHICO
- Não haverá, porque cada partido tem seu eleitorado, aos quais ele dirige especialmente a sua fala. Não são mais
interesses de classe, uma velha divisão de interesses que a esquerda sempre pensou que fosse o ponto de equilíbrio da política e que, na verdade, foi o marxismo que inventou. Isso de que a política tem a ver com o interesse de classe. A esquerda sempre orientou sua ação por aí, mas não é bem assim. São particularidades da política que têm outras conotações. Então, PT e PSDB criaram eleitorados aos quais a mensagem deles é mais receptiva, embora se você examinar desse ponto de vista, os interesses de classe que eles defendem são muito parecidos.

Como o próximo presidente poderá desaparelhar a máquina administrativa federal?
CHICO - Terá dificuldades. Não são intransponiveis mas, ao nomear cargos como esses, o governante cria a sua subclientela, e vai formando uma rede muito entranhada, criando dificuldades. O que é bem possível que ocorra, e as tendências indicam, é que o próximo presidente será um tucano, e ele terá muitas dificuldades.

Chega a ser visível a queda de qualidade dos serviços federais por causa desse aparelhamento...
CHICO - Não chega a ser visível por causa disso, mas porque o investimento social é pouco, mesmo que se proclame o Bolsa Família. O investimento social é pouco em relação ao nosso PIB. Há um dado que diz que todo investimento social do governo federal no penúltimo ano foi de R$ 20 bilhões. O lucro dos cinco maiores bancos brasileiros foi isso. Logo, o Bolsa Família é irrisório se comparado com o serviço da dívida pública. É de 20 por um.

Seríamos muito severos ao dizer que o governo Lula está voltado para os juros altos dos empresários, bolsa para os pobres e mensalão para os corruptos?
CHICO -
Não, não estariam equivocados. Só que essa não é uma característica do governo Lula. Os dois elementos
anteriores estavam no governo FHC, não estava o terceiro elemento porque a social-democracia brasileira não tem nenhuma raiz com trabalhadores e sindicatos, caso único no mundo. Não sei como eles conseguem chamar o PSDB de social-democrata. Corrupção e mensalão havia no governo FHC, e havia até mais por causa das privatizações.

A esquerda, hoje, no País, é o PSOL e o PSTU? Eles conseguem atingir a sociedade?
CHICO
- Muito pouco. Participei da fundação do PSOL por uma questão estratégia, não por uma questão eleitoral e pragmática. Participei para que a crítica de esquerda não desaparecesse, e entendo ser essa a função. Só que o pessoal que compõe o PSOL não entende assim, tem projeto de poder político. Eu não tenho. Não tenho porque acho que esse ciclo da ascensão da esquerda no Brasil para funções de governo está encerrado. Não vai reaparecer nas mesmas formas. Não que o ciclo da esquerda esteja encerrado.

Como seria a esquerda no poder?
CHICO
- A esquerda não chegará nunca ao poder. Não chegará pelo menos nos proximos 30 anos, numa avaliação muito vaga. As bases comas quais a esquerda se ergueu durante o século 20, sobretudo a esquerda brasileira, que se reergueu a partir da experiência da ditadura militar - com o movimento de redemocratização forte e com os sindicatos praticamente liberados para ações - essas bases sociais não existem mais. Com uma confluência extraordinaria de forças do sindicalismo que não era de esquerda, foi puxado para a esquerda por duas forças importantes: o movimento de redemocratização, do antigo MDB, e a esquerda desvalorizada pelo reformismo. Alguns dizem que sou reformista, mas eu costumo dizer que sou reformista desde criancinha e, prestem atenção, todo grande revolucionário foi antes um reformista. É na luta pela reforma que você aprende os limites do sistema. E aí, alguns tentam se virar contra ele ou não.

Assim como ocorreu entre o PCB e o PCdoB, no racha entre os defensores do combate institucional e da luta armada?
CHICO - Uma parte do PCdoB. Mas aquilo era um grande desconhecimento, que, para um marxista, não se permite.

Não o irrita, como marxista, o uso indiscriminado e eleitoreiro da palavra "esquerda"?
CHICO - O PT foi de esquerda, as forças que formaram o partido na década de 80 eram de esquerda, os sindicalistas, fora um ou outro, nunca foram de esquerda. A grande força de esquerda que entrou no PT veio de outras matrizes, veio da luta armada urbana fracassada e destruída, veio da academia em parte, veio da Igreja Católica, com a teologia da libertação, no seu auge, com forte conteúdo da esquerda. Daí ser combatida pelo Vaticano por ser um evangelho marxista. Uma grande contribuição da Igreja Católica, não das demais igrejas, que nao tiveram uma teologia voltada para os pobres. E aquela igreja trouxe um forte conteudo ético pra a esquerda brasileira, que não tinha. Fui militante da esquerda aqui no Recife desde os anos 50. Os socialistas tinham um forte sentido ético, mas o Partidão (PCB) não. O Partidão fazia qualquer coisa, até porque estava na clandestinidade.

Tem algum candidato hoje, não sendo do PSTU ou do PSOL, com condições de se declarar de esquerda? Ou é um grande descaramento?
CHICO
- Não tem e não comove. Não seria descaramento, mas comove só algumas parcelas românticas do eleitorado. Qual é a mensagem de esquerda diferente hoje? Até a direita é a favor da questão social no Brasil.

Essa igreja mais libertária poderá um dia retornar ao PT, ou o casamento foi dissolvido?
CHICO -
Acho que o casamento foi dissolvido, não por causa da ética, mas de um lado por causa da prática do poder, e de outro por causa da repressão do Vaticano, que atuou muito fortemente contra. Ali onde a Igreja da Libertação era mais infiltrada nas bases, como no Recife e Olinda, e em São Paulo, o Vaticano fez a velha técnica de reinar para dividir: esquartejou a arquidiocese de São Paulo em cinco bispados e o cardeal de São Paulo não quer dizer mais nada. Dom Paulo Evaristo Arns, que foi um grande bispo, teve um peso extraordinário, e a sua arquidiocese também. Quando a gente saía da cadeia, ia falar com dom Paulo. Quando eu saí da cadeia pela segunda vez, fui falar com ele e, surpreendentemente, também fui falar com o ministro Severo Gomes.

Mas Severo Gomes era um político diferente dos demais, não é?
CHICO - Ele era surpreendente, porque era um liberal. depois ficou meio reacionário quando foi ministro do Castello Branco e do Ernesto Geisel, e depois converteu-se ao nacionalismo, uma coisa extraordinária. Saí da cadeia e ele mandou um recado que queria uma declaração minha e de dois outros companheiros de cela. Olhe bem como é difícil, de um populista macro-sociológico, avaliar as pessoas. De longe, Severo Gomes era um liberal. Ele nos colocou, a mim e a dois amigos meus, na casa dele, defronte da PUC-SP, e escreveu a declaração com uma caneta, porque iria entregar ao Geisel pessoalmente. Só tirou uma cópia daquilo, porque a outra foi para o Golbery, e ele ficou com uma terceira via. Nós descrevíamos como era a prisão sob o regime no relatório ao Geisel. Era um relatório sobre as condições das prisões, justificando que não daria a uma datilógrafa. Dizia que o SNI (Serviço Nacional de Informações) estava em todas as partes. E que entregaria ao Golbery ele mesmo, porque o julgava um bandido.