JESSÉ SOUZA
A tese que pretendo defender nesse texto é a de que, a partir da crítica habermasiana da concepção do direito moderno em Max Weber, podemos ter uma idéia, não só do acerto da sua crítica a Weber nesse particular, mas também da sua contribuição para o esclarecimento da articulação entre moral, direito e democracia no mundo moderno. Tentarei cumprir esse desiderato em três passos: de início, procurarei explicitar a crítica habermasiana a Weber (1); em seguida, o objetivo será reconstruir, esquematicamente que seja, a teoria habermasiana do direito e da democracia moderna (2); finalmente, procurarei mostrar a relevância das idéias desse autor para o contexto brasileiro (3).
(1) A crítica habermasiana a Weber abrange não só a concepção weberiana do direito, mas a obra desse grande pensador como um todo. Weber pode ser considerado o "interlocutor privilegiado" de Habermas, no sentido de que sua teoria pode ser compreendida, nos seus aspectos essenciais, como uma reconstrução tanto da metodologia quanto da sociologia substantiva weberiana . Apesar do nosso interesse aqui ser bem mais restrito, a crítica habermasiana da concepção do direito em Weber excede de muito a problemática especificamente técnico-jurídica da aplicação das leis. Para Habermas, o direito é indissociável da política e da moral, sendo, como iremos ver, o elemento chave para a compreensão de um conceito especificamente moderno de democracia. Conseqüentemente, sua crítica da sociologia do direito weberiana é inseparável da crítica ao diagnóstico do mundo moderno nesse autor.
Desse modo, para Habermas, a percepção do direito em Weber como uma esfera separada dos contextos normativos de modo a possibilitar a institucionalização da racionalidade cognitivo instrumental, apresenta uma relação mais que sintomática com o diagnóstico da época weberiano. Esse diagnóstico refere-se à diferenciação das esferas de valores e à autonomização do sub-sistema racional-instrumental enquanto fatores do desenvolvimento capitalista. Esses são os dois movimentos aos quais Weber relaciona à sua crítica existencial-individualista do presente. Para Habermas, o primeiro aspecto liga-se a "perda do sentido", e o segundo a "perda da liberdade" (Habermas, 1987, pags. 337/340).
Com a diferenciação das esferas de valor que se autonomizaram, temos duas conseqüências: por um lado abre-se espaço para a racionalização de cada uma dessas esferas segundo critérios próprios; e, de outro, destroi-se a unidade de sentido típica das concepções de mundo religiosas. A tese da perda do sentido implica na impossibilidade de unidade tanto ética quanto teórica no mundo moderno. O mundo racionalizado não tem mais sentido em si e as esferas de valor autonomizadas que poderiam ser produtoras de sentido estão em insuperável luta entre elas mesmas. A razão perde sua unidade e universabilidade. Sua unidade não poderia ser mais reconstituída, na medida em que já não existiria nenhuma ordem legítima destinada à sua proteção. A tese da perda da liberdade, por sua vez, estaria relacionada à autonomização do subsistema racional-instrumental que ameaça a liberdade dos indivíduos sob seu domínio.
Habermas, apesar de enfatizar a atualidade da discussão weberiana, rejeita as conseqüências que Weber retira das duas teses. É precisamente nesse contexto que a concepção diferente para cada autor do sub-sistema jurídico vai mostrar toda a sua importância. Quanto à tese da perda de sentido, argumenta Habermas que a diferenciação das três esferas de valor, que correspondem aos três momentos da razão, não implicaria, necessariamente, na ausência da possibilidade de uma "unidade formal". Essa possibilidade de comunicação entre os vários momentos da razão é o desiderato do resgate argumentativo da teoria do discurso e do diálogo habermasiana. Weber teria confundido conteúdos particulares de valor com critérios universais de valor e, desse modo, defendido a teoria do "Wertkonflikt" (conflito valorativo) e da "Wertkollision" (colisão de valores).
Para Habermas, apenas os sistemas de ação como economia e estado, que cristalizam valores materiais como riqueza e poder, podem levar a conflitos insolúveis segundo critérios racionais. Os momentos da razão separados por sistemas de ação culturais podem propiciar "pontos de encontro" (Schaltstellen) entre seus distintos momentos. Um desses pontos de encontro tem significado especial para a integração social das sociedades capitalistas modernas: o que permite o encontro os aspectos cognitivo-instrumental e normativo da razão (Idem, p. 341).
O lugar central do direito na teoria habermasiana da modernidade, assim como na sua crítica a Weber, decorre precisamente do fato de que a ele cabe efetuar, no mundo moderno, a comunicação entre esses dois momentos. Para Habermas, Weber percebe unicamente a problemática da institucionalização do aspecto racional-instrumental, deixando de contemplar a institucionalização do momento prático-normativo no mundo contemporâneo. A causa principal dessa desatenção é a desvinculação entre direito e moralidade ou, o que é o mesmo em outras palavras, entre legalidade e legitimidade.
O argumento de Habermas dirige-se, dessa forma, contra a noção positivista do direito em Weber. Weber só conseguiria separar o momento ético, ou seja, do consenso racional como pressuposto da ordem jurídica no mundo moderno, do momento instrumental, ou seja, da aplicação do direito formal-racional, descurando da problemática ético-moral envolvida na constituição do direito. O positivismo jurídico pode apenas deslocar a problemática da fundamentação do direito, mas nunca eliminá-la ( Idem, p. 354 ).
Weber teria confundido a necessidade de fundamentação enquanto pressuposto do direito moderno com a implementação de valores materiais particulares, fazendo assim uma defesa do "Satzungsprinzip", ou seja, do direito formalizado e independente de valores materiais. A forma em que essa legalidade pretende legitimidade, a qual é um fundamento necessário a qualquer domínio político segundo o próprio Weber, é a chamada "legitimação pelo procedimento", noção essa destinada a grande fama e sucesso fazendo escola desde C. Schmitt até N. Luhmann. Segundo essa fórmula, seria a intrínseca racionalidade da "forma" jurídica que "produziria" a legitimidade do tipo racional moderno de dominação. De acordo com o argumento weberiano a autonomia do direito seria destruída na medida em que demandas materiais (vale dizer: morais) penetram sua estrutura formal.
(2) Na visão habermasiana, Weber não teria visto o núcleo moral do direito formal dado que confunde preferência por valores, o qual é sempre culturalmente contingente e resulta de orientações de valor subjetivas, com validade normativa, ou seja com o dever ser de normas com obrigatoriedade universal (Idem, p.549). Dessa forma, a institucionalização da racionalidade prático-moral pode não apenas ser relegada, mas até invertida, passando a significar uma fonte de irracionalidade a perturbar o formalismo jurídico.
A "desformalização" do direito é percebida por Habermas a partir de vários aspectos como: participação dos interessados, interesses do poder e do dinheiro, interpretação filosófico-jurídica da constituição, etc (Habermas, 1992, pags. 552/558). Assim sendo, não há como se falar, no sentido weberiano, de uma racionalidade específica ao direito, a qual precisamente lhe conferiria legitimidade. Para Habermas, legalidade pode produzir legitimidade apenas na medida em que a ordem jurídica institucionaliza procedimentos abertos a um discurso moral. O argumento habermasiano contra o positivismo jurídico, seja de um Weber, seja de um Luhmann, fundamenta-se numa análise histórica do direito como uma esfera que se define por meio de uma unidade tensa entre imparcialidade e instrumentalidade ou, em outras palavras entre moral e direito (Idem, pags. 580/590).
A ambigüidade entre imparcialidade e instrumentalidade seria constitutiva do direito desde seus primórdios tradicionais, demarcando e limitando o poder do senhor tradicional pela oposição entre poder profano e sagrado. Com a fragmentação da tradição na modernidade, a dominação política liberta-se do direito sagrado e torna-se autônoma. Como se substitui na modernidade o caráter obrigatório do direito sagrado? Ao nível de uma moral pré-convencional, a arbitragem e resolução de conflitos tem que apelar para o exercício de influência ( uma categoria não-moral portanto ) de modo a fechar compromissos e garantir a paz entre interesses conflitantes. O apelo à conciência moral dos participantes é possível apenas no nível convencional. Sob o ponto de vista histórico, esse nível corresponde ao atingido pelas sociedades ditas "tradicionais", que incluiria desde os grandes impérios da antiguidade até a idade média clássica. Supondo-se a existência dessa consciência moral como anterior ao estado, teríamos a seguinte hipótese: um árbitro ou um chefe qualquer, dentro do contexto de uma conciência moral convencional, pode apelar para obrigações morais que coagem a todos enquanto moral, e não apenas pelo exercício de prestígio ou influência. Duas consequências desse fato são fundamentais para nossa discussão: 1) ao lado do exercício de influência, passa a existir, com eficácia social, um poder autorizado normativamente pelo reconhecimento intersubjetivo de normas; 2) passa a existir a possibilidade de delegação de autoridade, posto que impessoal, permitindo a organização burocrática da dominação ( direito como meio de organização ).
O duplo aspecto do direito estatal, imparcialidade (enquanto forma de intersubjetividade normativa ) e instrumentalidade ( enquanto meio de organização burocrática da dominação )está criado. O desenvolvimento da conciência moral é o catalizador desse amálgama entre direito e poder. Para Habermas, e isso é fundamental, na passagem para a modernidade vai ser novamente uma transformação da consciência moral que conferirá a especificidade do direito moderno. Afinal é a extensão da figura jurídica do contrato, categoria central do direito civil moderno, para a idéia de contrato social ( que se materializa na idéia constitucional ) que está na base da noção moderna de estado de direito. Dado que a passagem do estágio convencional da moral para o estágio pós-convencional espelha precisamente a substituição de uma moral heterônoma, baseada em princípios superiores imutáveis ( sejam esses de fundo religiosa ou não ), em favor de uma moral autônoma baseada na livre aceitação sem pressões por parte de todos da regulação normativa da vida social, temos o princípio constitucional como divisor de águas na passagem para a modernidade.
Nesse sentido, o direito retiraria sua legitimidade do fato de ser a forma institucionalizada de uma moral procedural e autônoma a qual não se restringiria a aspectos instrumentais. A noção de autonomia do direito moderno ganha assim o sentido, inverso do positivismo jurídico, de abertura à racionalidade procedural de uma moral pós-convencional.
Autonomia do direito passa a articular-se com a noção de democracia enfática: "não existe direito autônomo sem democracia real" (Idem, p. 559). (3). Como percebe Habermas concretamente essa relação entre direito e democracia? E mais outra questão que nos interessa ainda mais de perto: suas idéias nesse campo referem-se apenas à realidade longínqua da Europa e América do Norte, sem consequências para uma realidade como a brasileira?
Quanto a primeira questão, Habermas dedicou em 1992 quase 700 páginas a ela em um livro com título sintomático "Faktizität und Geltung" ( facticidade e validade ). Esse título remete, não por acaso, a questão de longa tradição na sociologia jurídica da relação do direito enquanto fato e enquanto valor. Resumindo-se esquematicamente o argumento habermasiano, teríamos a noção do direito positivo representando a esfera social incumbida de incorporar uma moral pós-tradicional ( no sentido explicitado acima ) na medida em que garantiria também, e simultaneamente, a ameaça de sanções externas.
A eficácia jurídica, desse modo, junta a facticidade da imposição da lei estatal com a validade e legitimidade de um processo racional de produção das leis. Sem as garantias religiosas ou metafísicas depreende-se a legitimidade e força integradora do direito positivo do fato dos receptores da norma serem, também, seus produtores em alguma medida. No mundo moderno, portanto, e daí decorre toda a sua importância para uma teoria da modernidade e da democracia moderna, cabe ao direito ser o elo de ligação entre as interações baseadas na solidariedade e no entendimento e a esfera anônima e impessoal do poder administrativo.
Pressuposto dessa discussão é a divisão habermasiana do mundo moderno em sistema e mundo da vida. No primeiro teríamos materializada a razão sistêmica - que substitue a razão instrumental weberiana, diz Habermas seguindo Luhmann - onde a coordenação das ações dos atores sociais se dá a partir de estímulos de meios de regulação, como o dinheiro no caso exemplar da economia, e do poder no caso da política definida como poder administrativo. Nesse terreno não há, nem deve haver concorda Habermas, diálogo ou formação de consenso argumentativo em nome da maior eficiência da atuação dos meios regulativos. O que era "alienação" para Marx, converte-se em destino do homem moderno para Habermas. No tocante a reprodução material( economia e poder administrativo ), portanto, o capitalismo teria eficiência ótima. Isso implica, na prática, no abandono da noção de revolução.
Quanto a reprodução simbólica, no entanto, o quadro muda de figura. É nesse contexto que Habermas identifica as patologias do mundo moderno: a fragmentação e a colonização do mundo vivido. Basicamente, os meios regulativos dinheiro e poder invadem outras esferas da cultura impondo seus imperativos, levando a escassez e fragmentação do recurso mais escasso nas sociedades modernas: sentido. Sentido seria função da ação comunicativa, ou seja, do potencial argumentativo e racional liberado pelo processo de individuação e quebra da tradição que marcam a modernidade ocidental.
A função do direito no mundo moderno, para Habermas, seria precisamente permitir a tradução da linguagem comum do mundo da vida em linguagem sistêmica e vice-versa. No que se refere a uma sociologia da democracia, essa tradução entre esferas institucionalizadas e mundo da vida pressupõe um espaço público político. O que é pressuposto aqui é uma periferia (no sentido de a margem dos mecanismos institucionalizados de poder) capaz de perceber problemas e, ao tematizá-los, impor a atenção dos procedimentos democráticos institucionalizados. Essa periferia é suposta fora do ambiente institucional, posto que esse é dominado por rotinas e pouco sensível, por si mesmo, a reconhecer o dissenso e o conflito. As condições de possibilidade de existência de tal esfera são problemáticas, já que uma formação de opinião mais ou menos espontânea é a base da coisa inteira. O que é pressuposto aqui é a existência de um mundo da vida racionalizado, ou seja, onde a tradição seja possível de reconstrução e crítica. Habermas percebe sentido não só como recurso escasso, mas também como função da espontaneidade social (Idem, p. 334).
A esfera pública precisa não apenas identificar problemas mas também dispor de meios eficientes de pressão sobre o parlamento, órgão a meio caminho entre a esfera pública e o poder administrativo. Para Habermas, a esfera pública refere-se a um terceiro aspecto da ação comunicativa: não à sua função ou conteúdo, mas ao seu espaço social. Esse espaço social seria o espaço onde as diversas experiências pessoais e privadas podem encontrar repercussão e tornarem-se fatos políticos. Quando essas experiências manifestam-se através da arte, religião ou literatura temos a ligação entre uma esfera pública literária e política.
Habermas repete aqui sua antiga idéia, originalmente formulada no "Strukturwandel der Öffentlichkeit" (Mudança estrutural da esfera pública) de 1962 (Habermas,1975, pags. 42/112), da esfera pública social como "caixa de ressonância" de experiências privadas que logram serem ouvidas pela esfera política institucionalizada. A sociedade civil, no outro pólo, seria a base institucional voluntária dessa esfera pública, composta de associações, movimentos e organizações mais ou menos espontâneas que funcionam como um "auto falante" de anseios mais ou menos organizados que alimentam a esfera pública na sua função de sensibilizar os canais institucionalizados que formam a sua contraparte. A esfera pública, nesse sentido, seria um híbrido um "continuum" a vincular espontaneidade ( da sociedade civil ) aos canais institucionalizados ( o poder político administrativo ). A união desses três elementos representa, para Habermas, a tradução sociológica do conceito de democracia deliberativa.
É extremamente interessante notar nesse livro de 1992, onde Habermas é confrontado com o desafio de demonstrar a existência e eficácia de uma racionalidade comunicativa em meio aos contextos pragmáticos "realmente existentes", a transformação da categoria de influência. Influência deixa de ser, como era ao tempo da "teoria da ação comunicativa" de 1981, uma categoria sistêmica apartada da lógica comunicativa baseada na categoria do convencimento. Influência passa a ser ligada a convencimento na medida em que se instaura uma nova oposição entre influência legítima e ilegítima (Habermas, 1992, p. 439).
Percebendo o contexto de uma sociedade mediática, afastando-se da tentação de pensar idealisticamente a relação entre entendimento e convencimento, como se ela pudesse efetuar-se, hoje em dia, segundo o modelo clássico da àgora grega, onde as pessoas comunicavam-se imediatamente (imediaticamente também) umas com as outras, Habermas admite a inserção de poder e prestígio, categorias não-comunicativas, como definindo em última instância a seletividade dos temas abordados, assim como a forma e à medida que os mesmos são tematizados na esfera pública. Essa admissão, no entanto, não compromete a hipótese básica da eficácia de uma racionalidade não restrita a poder, manipulação e instrumentalidade. Isso acontece na mediada em que, mesmo que a seletividade dos temas controversos seja uma função do prestígio ou do poder, sua capacidade de construir consensos, em um contexto minimamente pluralista, depende de convencimento. Acredito ser isso que Habermas tem em mente quando alerta que sentido pode ser manipulado, mas não comprado ou imposto.
Essa concepção dual da política como uma esfera composta por um componente comunicativo (sociedade civil e espaço público) e outro de poder administrativo, leva a uma nova concepção de estratégia da ação política. O poder comunicativo deve autolimitar-se e não ceder a tentação - como no ideário marxista - de conquistar o poder administrativo de modo a controlá-lo. Disputa-se, na esfera pública, por influência sobre a condução da política e não por poder político (Idem, p. 364).
Apesar da questão do "quantum" de autonomia real do público no processo de convencimento seja uma questão aberta, que nenhuma pesquisa empírica decidiu de forma conclusiva, pode-se ao menos concluir que os processos de comunicação pública podem funcionar tanto melhor quanto mais a sociedade civil se aproprie dos mesmos. É claro que a mídia caracteriza-se por características como fragmentação de contextos e relações, pessoalização de questões substantivas, mistura de informação com divertimento, etc. Este seria, pra Habermas, o conteúdo de verdade da indústria cultural (Idem, p. 456). No entanto, mesmo que tais fenômenos nos leve a uma posição de desconfiança quanto às possibilidades reais de influência da sociedade civil no sistema político, isso só se aplicaria para os estados de normalidade. Nos instantes de mobilização e crise, o que vemos é que começam a funcionar as estruturas que baseiam sua autoridade em um público que toma partido.
Na sociologia da democracia habermasiana o direito entra como mediador entre poder comunicativo (sociedade civil e esfera pública) e poder administrativo. Sob o ponto de vista do poder comunicativo o direito compensa as fraquezas de uma razão prático-moral sem poder coativo, e, portanto, sem possibilidade real de lograr uma coordenação de ações sociais segundo seus princípios. Sob a ótica do poder administrativo, o direito, na medida em que o poder decisório do estado está aberto a "filtros de legitimação", pode garantir as condições de produção de um direito legítimo.
(3) Essa discussão, ainda que esquemática, da teoria da democracia habermasiana nos ajuda a localizar onde reside a sua contribuição, assim como da ética comunicativa em sentido amplo, para o debate contemporâneo: esta residiria muito mais em uma teoria da legitimação política, do que em uma teoria da validade moral no julgamento de ações individuais. Sem que isso implique na ausência de conseqüências de um ponto de vista como o da ética comunicativa, a qual promove uma perspectiva universalista e pós-tradicional nas relações éticas, em todas as esferas, inclusive da vida familiar, como defende Seyla Benhabib. (Benhabib, 1992, p. 39 ).
Dessa forma, o que estaria em jogo na teoria habermasiana do mundo contemporâneo, seria uma construção de critérios substantivos e éticos para avaliar e definir processos democráticos. Isso não é pouco em um contexto pós-guerra fria onde o padrão de comparação das democracias ocidentais deixa de ser o totalitarismo mais obscuro dos países do chamado "socialismo real", passando a necessidade de auto-legitimação a exigir a explicitação e discussão dos pressupostos mais fundamentais da vida em sociedade. Acho que isso está por trás do atual debate entre comunitaristas e liberais nos Estados Unidos e Europa . O que me parece pressuposto na crítica habermasiana ao positivismo jurídico é a necessidade, para as sociedades modernas, de explicitar e manter consciente os fundamentos da vida coletiva. Esse me parece o objetivo da crítica ao subjetivismo ético weberiano e o componente construtivo e positivo da crítica habermasiana a esse autor.
De que forma essa discussão pode ser interessante para nós brasileiros ? Acredito que ela pode ser muito importante, desde que ultrapassemos alguns mal-entendidos. O primeiro deles, e o mais ingênuo e injusto, é a generalizada crítica de Habermas como um autor normativo, "utópico", que vê o mundo como uma dimensão de entendimento mútuo e sem violência. Na realidade, isso não é inferível em nenhum texto de Habermas. Ao contrário, o mundo moderno é criticado pela violência material e simbólica. A única pressuposição do autor, a qual não tem nada de normativa ou utópica, é que além de violência, monetarização e burocratização das relações humanas, sofrimento, ausência de sentido e exercício arbitrário de poder, a modernidade ocidental é marcada por um novo elemento que não existia antes do século XVlll: as pessoas precisam estar, em alguma medida, convencidas da legitimidade do poder, convencimento esse fundado em regras "racionais" ao contrário das formas de legitimação tradicionais. Racional aqui significa a possibilidade de "aprendizado normativo" a partir da possibilidade de criticar a sociedade e a sí mesmo.
Nesse ponto atingimos o único verdadeiro pressuposto fundamental da teoria habermasiana, o qual tem a ver com o que Max Weber chamava de validade e significado universal da cultura ocidental: a produção do indivíduo moderno, capaz de autonomia e autocrítica.
Ora, o Brasil participa dessa herança. Certamente não na versão protestante, nórdica, que irá informar o individualismo como ideologia máxima do ocidente, mas segundo alguma forma de compromisso entre individualismo e hierarquia como acentuam com muita propriedade Roberto da Matta e Richard Morse (DaMatta, 1981, pags. 139/193 e Morse, 1988, pags. 21/69). O importante é que a tradição seja passível de crítica, e essa conquista do individualismo nos temos de sobra na nossa cultura e é isso que é fundamental para o conceito habermasiano de mundo da vida racionalizado. Não é fundamental, por exemplo, a qualidade de país pobre e periférico economicamente. A separação dessas duas esferas, uma material e a outra simbólica, como seguindo valores e lógicas independentes uma da outra, é o fundamento mesmo da reconstrução e crítica do marxismo levada a cabo por Habermas.
Esse indivíduo, tanto para Weber quanto para Habermas, é, com certeza, uma mera possibilidade, ou seja, a construção de indivíduos autônomos capazes de uma visão crítica de si e do mundo é improvável nas condições de fragmentação da consciência do mundo moderno. O que temos, comumente, são indivíduos "individuados", ou seja, separados e independentes uns dos outros sem nenhum interesse não material que os una. O mundo moderno, por outro lado, apresenta, pela primeira vez a constelação histórica de permitir indivíduos no sentido conteudístico do termo. Existe a possibilidade objetiva de guiar a vida privada e pública segundo critérios autônomos e não heterônomos. Se a balança, em uma determinada situação concreta, pende para cada um dos lados, esse é um problema da prática política que não pode ser decidida de antemão. É apenas de uma possibilidade que se trata também quando se fala da condução democrática da vida pública. O ponto aqui, que faz toda a diferença, é que essa possibilidade existe aqui e agora no mundo real e cotidiano.
Não vejo como dizer que uma teoria como essa seja inaplicável ao Brasil. Parece-me que nosso país participa dos dilemas da construção da modernidade como qualquer outro, com suas óbvias peculiaridades. Modernidade aqui significa encarar o desafio de tornar realidade os potenciais abertos pela racionalidade libertada de tutela que herdamos dos gregos e que foi redescoberta pela europa do renascimento e iluminismo. Modernidade no sentido econômico, que é a acepção mais comum do termo entre nós, corresponde, na realidade, a apenas um dos seus aspectos.
Mesmo o fato de nosso decantado "atraso institucional", que é certamente verdadeiro sob vários aspectos, não invalida o que foi dito acima. A esfera pública que discutimos acima está situada fora do ambiente institucional e pode e deve funcionar como elemento inovador das práticas institucionais. Será que da campanha das diretas ao "impedimento" do collor não é perceptível um viés mais universalista, por parte da esfera pública, dirigido a nossa prática institucional? A existência de instituições estáveis é certamente um elemento importante para a democracia que Habermas tem em mente. O ponto aqui é que instituições são construções sociais, são materializações de crenças que lhe preexistem. Nesse sentido, elas não são condição, mas, ao contrário, resultado, consequência de um mundo da vida racionalizado e capaz de auto-criticar-se.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENHABIB, Seyla. SITUATING THE SELF. Routledge, New York, 1992.
DA MATTA, Roberto. CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS. Zahar, Rio de Janeiro, 1981.
HABERMAS,Jürgen. STRUKTURWANDEL DER ÖFFENTLICHKEIT. Luchterhand, Berlin, 1975.
--------------- THEORIE DES KOMMUNIKATIVEN HANDELNS. Suhkamp, Frankfurt, 1987.
--------------- FAKTIZITÄT UND GELTUNG. Suhkamp, Frankfurt, 1992.
MORSE, Richard. O ESPELHO DE PRÓSPERO. Companhia da Letras, São Paulo, 1988.
Um comentário:
Antes de qualquer coisa, gostaria de parabenizá-lo pela metodologia e clareza usada na formulação do artigo.
Com relação ao tema, em que consiste "instituições estáveis" no âmbito brasileiro? Pelo que vejo, vivemos um período de desconfiança política enorme agravado pela corrupção generalizada e a "publicação" de um estado paralelo já constituído na periferia das cidades. Como se formar instituições estáveis neste particular?
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