Por LEANDRO KONDER
Para podermos começar a avaliar o papel desempenhado por Caio Prado Júnior na história do marxismo no Brasil, precisamos reconstituir, de algum modo, as condições em que se deu a sua entrada na cena histórica. Qual era o quadro em que ocorreu o aparecimento da Evolução política do Brasil?
No prefácio que escreveu para a primeira edição da obra, Caio Prado Júnior advertiu que não se tratava de uma “História do Brasil”, mas de uma “síntese”, de “um simples ensaio”. Admitiu, contudo, que se serviria de um “método relativamente novo”, que era a “interpretação materialista”.
O advérbio “relativamente”, posto antes do adjetivo “novo”, constituía uma expressão de modéstia, talvez também o reconhecimento de que filosoficamente é raro o novo se apresentar em estado “puro” (é difícil o absolutamente novo), mas, em todo caso, abria caminho, igualmente, para o reconhecimento de que a “interpretação materialista” tivera, entre nós, antes da Evolução política do Brasil, alguns precursores.
Há, por exemplo, o caso do professor de latim Antonio Piccarollo, italiano, que chegou ao Brasil em 1904 e em 1908 já se dispôs a escrever uma síntese da evolução histórica e da situação política do Brasil, publicada no manifesto programático do Centro Socialista Paulistano. Mas o materialismo de Piccarollo era um materialismo mecanicista, que não tinha muito a ver com a “interpretação materialista” a que depois Caio Prado Júnior viria a se referir: Piccarollo dissolvia a dialética no evolucionismo, combinava elementos do folheto de Engels Do socialismo utópico ao socialismo científico com a idéia de que nem a natureza nem a história podem realizar saltos. Sua perspectiva subordinava a mudança à continuidade.
Há, também, o caso do jornalista Antonio dos Santos Figueiredo, intelectual socialista independente, autor do livro A evolução do Estado no Brasil, publicado em 1926. o materialismo de Antonio dos Santos Figueiredo, contudo, pagava elevado tributo às facilidades do ecletismo, que dissolviam a coesão interna do pensamento e permitiam a mistura de Marx com o historiador Henri Sée, discípulo de Werner Sombart. Além disso, o materialismo de Antonio Figueiredo era meramente contemplativo, constatativo, e por isso se deixava absorver por um pessimismo paralisador, que correspondia à situação de um sujeito que não enxergava nenhuma possibilidade de intervenção no movimento do real, limitando-se a deplorar que esse movimento não se realizasse como devia.
Em certo sentido, o materialismo de Antonio Figueiredo lembrava o de Feuerbach e merecia as críticas que Marx tinha feito ao autor de A essência do cristianismo. Faltava ao brasileiro, como faltava ao velho filósofo alemão, uma compreensão materialista da práxis humana, da ação material pela qual os sujeitos humanos estão sempre modificando a realidade objetiva e se transformando a si mesmos: o materialismo deles ficava restrito ao plano da existência de objetos maciços, densos, movidos por uma força própria, assustadoramente imunes ao poder revolucionador dos homens.
Não sei se Caio Prado Júnior sabia da existência de Antonio Piccarollo, nem se ele havia lido o livro de Antonio Figueiredo quando escreveu Evolução política do Brasil. Na medida, porém, em que tinha se interessado pelo marxismo, é provável que o nosso historiador tenha ouvido falar de Octávio Brandão, o farmacêutico autodidata que se havia transformado no principal teórico da agremiação que congregava as poucas centenas de pessoas que, no Brasil dos anos vinte, aderiam ao ideal comunista de Marx: o Partido Comunista do Brasil.
Em 1924, Octávio Brandão escreveu o livro Agrarismo e industrialismo, que só pôde ser publicado em 1925, indicando como autor um fictício Fritz Mayer e como lugar da publicação (ardilosamente, para driblar a repressão) a cidade de Buenos Aires, na Argentina. A obra serviu de base para o programa que o PC adotou na segunda metade dos anos vinte. Teria Caio Prado Júnior tomado conhecimento do documento programático dos comunistas brasileiros? Teria ele lido o texto de Octávio Brandão? Não sei. Mas a ressalva sugerida em sua caracterização do método materialista como “relativamente novo” pode se referir, implicitamente, ao esforço pioneiro realizado por Brandão.
De qualquer modo, a interpretação materialista da história, em Agrarismo e industrialismo, não correspondia àquilo que Caio Prado Júnior buscava em seu ensaio. Brandão, fascinado por Lênin, esforçava-se por completar o materialismo com a dialética, para torná-lo mais conseqüente, para permitir que a práxis revolucionária dos homens também fosse pensada em termos materialistas. Sua dialética, entretanto, ficava prejudicada por uma formalização exarcebada, de tipo positivista. Era uma dialética que – conforme procurei mostrar em artigo anterior, neste volume –, ficava reduzida ao esquema triádico de Hegel (tese, antítese, síntese), que era esquematicamente aplicado, como fórmula definitiva e universalmente válida, pronta e acabada, a uma gama notavelmente vasta de processos históricos particulares, tais como a história do levante militar de 1924, a história do movimento operário brasileiro, os quatro séculos de transformação da sociedade brasileira e os vinte e tantos séculos de transformação da sociedade italiana (que então se achava sob o controle dos fascistas de Mussolini).
O grande desafio, para um materialismo dialético, sempre foi o de pensar a relação entre a força transformadora (e autotransformadora) do sujeito e a força inerente ao movimento mecanicista ou do chamado “evolucionismo vulgar”, a criatividade do sujeito se esfuma e se dissipa, desaparece o espaço em que a iniciativa do sujeito poderia desempenhar um papel realmente significativo, o movimento subjetivo tende a se reduzir a um epifenômeno, a um apêndice do movimento objetivo: os homens passam a ser marionetes, bonecos manipulados pelo crescimento das forças produtivas e por uma estranha dinâmica cega derivada das relações de produção. O ser social não só determina a consciência (como ensinou Marx), mas também a determina de forma unívoca, direta e imediata.
Por outro lado, não é casual que, ao longo da história, o reconhecimento da importância da ação específica do sujeito tenha ocorrido, com enorme freqüência, no campo do idealismo filosófico. Se o vigor criativo dos sujeitos humanos minimizar; por um momento que seja, o peso do condicionamento material em que a intervenção subjetiva se realiza, a criatividade humana deixa de ser efetiva, torna-se mítica, escorrega para a afirmação inócua do “voluntarismo”, que é uma modalidade de idealismo.
Octávio Brandão não se mostrou capaz de enfrentar o desafio que se punha no caminho de um materialismo dialético. Quando tentava discernir os “lugares” em que a vontade transformadora dos sujeitos revolucionários poderia se impor, encontrava dificuldades e seu discurso se tornava enfático porém vago. Há uma passagem de Agrarismo e industrialismo, aliás, que evidencia a impotência do autor para encaminhar uma solução adequada aos problemas que o preocupavam: não conseguindo formular indicações suficientes para as possibilidades da ação revolucionária aqui dentro, no âmbito da realidade brasileira, ele se consola através da convicção de que as chances da revolução viriam de fora, da situação mundial, já que o mundo, a seu ver, estava transformado num “vulcão prestes a explodir” e, na primeira ocasião, um conflito entre o imperialismo inglês e o imperialismo norte-americano desencadearia “uma guerra formidável na América do Sul e no mundo inteiro”. Não se pode ignorar nessa visão o ânimo de combate e o pressentimento valioso de uma nova guerra que depois explodiu em 1939; porém o ímpeto do lutador estava mal pensado e o presságio encerrava um equívoco óbvio (e sintomático): a “guerra formidável” não se deu entre norte-americanos e ingleses (que combateram juntos contra os alemães), nem ocorreu “na América do Sul”, a não ser em episódios menores.
Caio Prado Júnior não podia se apoiar no materialismo de Octávio Brandão; seu projeto obrigava-o a ir além dos horizontes teóricos do combativo intelectual “oficial” do Partido Comunista. A perspectiva materialista da Evolução política do Brasil exigia que o historiador reconhecesse simultaneamente toda a dureza das condições objetivas e todos os empenhos subjetivos que cabiam no quadro constituído pela objetividade, pela sociedade brasileira.
Caio Prado Júnior não olhava para o mundo como o lugar de onde viria uma catástrofe redentora (a guerra): a situação lá fora era, para ele, a situação do mercado mundial, que deveria ser avaliada em função da nossa situação interna, isto é, das vicissitudes do nosso modo de produção. Nossos problemas eram os problemas da nossa sociedade e da nossa articulação com o mercado mundial.
Objetividade e subjetividade estavam mutuamente imbricadas uma na outra; e a predominância das condições objetivas não poderia dissipar a irredutibilidade dos momentos subjetivos que marcam a história. Caio Prado Júnior, logo no começo do seu ensaio, examinava as questões impostas objetivamente aos homens (portugueses) pela colonização e se dava conta das iniciativas – subjetivas – que eles tiveram para fazer face às circunstâncias: ele se referia, por exemplo, à tentativa representada pelas capitanias hereditárias, e observava que ela não tinha sido eficaz: “este ensaio de feudalismo não vingou”. Havia a necessidade da colonização (objetiva), havia as circunstâncias (objetivas) drasticamente difíceis para um país de pequena população e escassos recursos, como Portugal, e houve, também, a iniciativa da malograda feudalização (o momento subjetivo).
Em outro período da nossa história, lembrado pelo ensaio, o método de Caio Prado Júnior, sua interpretação materialista, nos permite perceber claramente suas características fundamentais: a vinda de Dom João VI com sua corte para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, desencadeia objetivamente o processo de mudanças que haveria de resultar na nossa independência política; por suas peculiares condições objetivas, esse processo descartou a luta armada que, em outros países do continente, viabilizou a conquista da autonomia; no entanto, a concretização da independência, entre nós, dependeu da mobilização subjetiva da classe dos proprietários rurais que podiam promover o movimento separatista.
A situação objetiva impõe, a cada passo, limites aos movimentos subjetivos. A massa escrava, que chegou a representar metade da população do Brasil num certo período da época colonial, era mantida em estado de divisão e desarticulação, impossibilitada – objetivamente – de constituir uma massa coesa; por isso, era incapaz de desempenhar, naquelas circunstâncias, um papel político (subjetivo) de real importância. No entanto, o ímpeto rebelde subjetivo, cercado e reprimido, nem por isso desaparecia: algo dele ecoava em expressões de insatisfação e revolta que se manifestavam em outras áreas, e que teriam influenciado o movimento de 26 de fevereiro de 1821 que levou Dom Pedro a reorganizar seu mistério com políticos de prestigio popular, no Rio de Janeiro.
Essa é a concepção de Caio Prado Júnior: nem a história se faz por si mesma, automaticamente, nem os homens a fazem de maneira arbitrária, impondo-lhes desenvoltamente seus desígnios. Marx já havia ensinado, antes, que cada geração, ao surgir, se vê posta diante de problemas herdados da ação das gerações precedentes, e é compelida a viver numa situação que não foi por ela livremente escolhida; no entanto, a reação da nova geração em face do quadro que lhe foi imposto não é predeterminada, comporta variações, passa por escolhas, depende de opções. O historiador materialista comprometido com um projeto revolucionário precisa reconstruir o quadro, compreender os problemas postos pela vida, avaliar as condições materiais, para poder entender criticamente as iniciativas, as propostas, os anseios, o ânimo com que os homens se movem na arena de luta na qual se vêem colocados.
Caio Prado Júnior assimilou essa dimensão do pensamento de Marx e por isso foi capaz de aplicar pioneiramente, entre nós, a concepção da história elaborada pelo autor d’O Capital. Para podermos avaliar como há de ter sido difícil essa conquista, devemos lembrar que, no começo dos anos trinta, no centro do movimento comunista mundial, estava se cristalizando uma codificação doutrinária – o “marxismo-leninismo” – que impunha pesados sacrifícios à dialética marxiana original. O autor da Evolução política do Brasil, como comunista que era, não ficou imune ao charme da União Soviética (conforme se vê no livro URSS, um novo mundo, de 1934). Não se notam, entretanto, em sua “interpretação materialista” da história do Brasil, as marcas mais evidentes do estilo que o stalinismo conferiu ao “marxismo-leninismo”, como, por exemplo, o esvaziamento da subjetividade (reduzida à liderança do partido revolucionário e praticamente negada às massas populares), o primado de uma objetividade cega (a inexorabilidade da marcha para o socialismo, sustentada por um conjunto de fórmulas dogmáticas), uma esquematização empobrecedora de todas as contradições, uma atitude de feroz reserva em face do “novo” e das surpresas que lhe são inerentes, bem como o recurso sistemático a um bem montado arsenal de citações legitimadoras. O marxismo utilizado pelo nosso historiador não tinha nada disso e se combinava com uma extraordinária abertura para o ineditismo da aventura brasileira. Paulo Sérgio Pinheiro chegou a escrever: “O marxismo de Caio Prado não é o recitativo de fórmulas ou citações, mas uma via de interpretação de um viajante infatigável e implacável pela realidade de seu próprio país e de seu tempo” (Isto É, 7-7-1982).
Caio Prado Júnior, em 1933, realizou uma autêntica façanha, ao superar o obstáculo interno, constituído pelas graves insuficiências teóricas de seus predecessores brasileiros no campo da “interpretação materialista”, e ao escapar da pressão externa, decorrente da codificação oficial do “marxismo-leninismo”.
É verdade que a reflexão marxista pessoal e independente que permitiu a elaboração da Evolução política do Brasil (e depois permitiria o preparo do esplêndido Formação do Brasil contemporâneo) não conseguiu se cristalizar em resultados filosóficos satisfatórios, no esforço que Caio Prado Júnior realizou para explicar a fundamentação gnosiológica de suas investigações. Independentemente das divergências que se manifestam entre os críticos de Caio Prado Júnior na avaliação da Dialética do conhecimento e das Notas introdutórias à lógica dialética, parece-me que predomina na impressão dos leitores do grande historiador paulista uma certa decepção: os dois trabalhos ficam aquém dos ensaios anteriormente publicados. Ao se debruçar sobre si mesma, reflexivamente, a teoria não conseguiu produzir textos tão bem sucedidos como aqueles em que se aplicou à pesquisa histórica.
Mas também é verdade que o êxito alcançado pela teoria aplicada não se perdeu. Evolução política do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo não são apenas momentos brilhantes da nossa história escrita, não contêm somente ricas observações empíricas: são obras capazes de suscitar estudos metodológicos surpreendentemente enriquecedores, cheios de implicações teóricas. Evolução política do Brasil, então, mais do que “um simples ensaio” (como modestamente o classificou seu autor) é um marco na história do marxismo no Brasil.
O simples fato de que a obra de estréia de Caio Prado Júnior tenha sido escrita, tenha sido publicada e se tenha tornado acessível a todos, nos obriga a um rigor crítico maior no julgamento das interpretações que os marxistas brasileiros posteriores fizeram da realidade brasileira: em diversos aspectos decisivos, tais interpretações constituíram um grave retrocesso em relação ao livro de 1933, um recuo para uma perspectiva materialista “vulga”, um restabelecimento de esquemas sociológicos de tipo “positivista” e uma adaptação mental à ideologia sancionada pela direção do Partido Comunista da União Soviética.
O aparecimento da Evolução política do Brasil era a comprovação inequívoca de certas possibilidades de reflexão crítica sobre a realidade brasileira que os marxistas, no Brasil, ao longo das duas décadas que se seguiram à publicação, não souberam aproveitar.
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